quinta-feira, 13 de setembro de 2012

O país da não-inscrição


“Em Portugal nada acontece.” (…) “Nada acontece, quer dizer, nada se inscreve – na história ou na existência individual, na vida social ou no plano artístico.”(José Gil)
Com a Revolução de Abril, e a seguir ao «verão quente de 75», a afirmação dos valores democráticos da igualdade, liberdade e tolerância como que fez esquecer das consciências e da vida a guerra colonial, os vexames, a cultura do medo e a pequenez medíocre engendrada pelo salazarismo. Não houve julgamentos dos responsáveis pelo antigo regime. Um manto como que tapou a realidade repressiva, castradora e humilhante desse nosso passado recente. Como se fosse possível apagar da mente e da história a realidade, sem que as cicatrizes do passado reaparecessem aqui ou ali a testemunhar o que se quis apagar mas que insiste em permanecer.
Quando não se faz de forma devida o luto, o morto e a morte virão assombrar-nos sem descanso.
Com efeito, no tempo de Salazar, o país vivia mergulhado num tal obscurantismo, que a existência individual nos tolhia quase por completo. O que ditava a moral do salazarismo era uma sucessão de atos obscuros, com tanto mais valor quanto se faziam modestos, humildes, despercebidos, onde não havia espaço público e tempo coletivo visíveis, senão na eternidade muda das almas, segundo a visão católica própria de Salazar.
Em muitos aspetos, o Portugal de hoje é uma extensão do antigo regime. É um velho hábito do salazarismo que nos ensinou a irresponsabilidade – reduzindo-nos a crianças, adultos infantilizados – que vem sobretudo da recusa imposta ao indivíduo de se inscrever, porque inscrever implica ação, afirmação e decisão com as quais se conquista autonomia e sentido para a existência.
Na ânsia desesperada de deixarem obra feita, indestrutível, tomaram-se medidas «definitivas», criaram-se leis e instituições «irreversíveis» para a construção da nova sociedade, no entanto, a parte essencial da não-inscrição continuou viva, e toda a atividade frenética e delirante para inscrever a Revolução – escrevendo a História – mais não fez que alimentar a incapacidade de «inscrever» no mais profundo do inconsciente dos portugueses.
A pacificada vida social portuguesa vê a não-inscrição assumir os seus privilégios em todo o seu esplendor. Grandes empresas que vivem à sombra do poder político, ministros que saltam do poder para as administrações das grandes empresas, grandes escritórios de advogados que «cozinham» leis à medida das conveniências, parcerias negociadas com o sector privado onde o estado é manifestamente prejudicado, inúmeras comissões de inquérito onde se perde tempo e não se apura coisíssima nenhuma, mega processos judiciais onde quase ninguém é culpado ou acabam por prescrever, medidas de austeridade gravosas que nos impõem sacrifícios inúteis, e que nos arrastam para o abismo e, “se tudo se desenrola sem que os conflitos rebentem, sem que as consciências gritem, é porque tudo entra na impunidade do tempo – como se o tempo trouxesse, imediatamente, no presente, o esquecimento que está à vista, presente. (…) as consciências vivem no nevoeiro. (…) uma neblina presente que se apodera do interior da consciência e rói, sem que ela dê por isso” (José Gil, Portugal, Hoje – O medo de Existir).
E o que é o nevoeiro? É a causa da não-inscrição ou esta existe por efeito daquele? Parece ser impossível responder a esta questão. Vivemos (talvez) perigosamente acomodados, indolentes, num coletivo de indivíduos incapazes de agir, aceitando todas as tropelias e negociatas de uma elite de indivíduos bem-falantes que nos dirigem como se nada fosse. “É a vida!” dizemos nós para afirmar a nossa resignação e impotência, ao ver as coisas passarem superficialmente à nossa frente e ficamos indiferentes e conformados, sentindo que nada podemos fazer.

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