“Em Portugal nada acontece.” (…) “Nada acontece, quer dizer, nada se
inscreve – na história ou na existência individual, na vida social ou no plano
artístico.”(José Gil)
Com a Revolução de Abril, e a seguir ao «verão quente de 75», a
afirmação dos valores democráticos da igualdade, liberdade e tolerância como
que fez esquecer das consciências e da vida a guerra colonial, os vexames, a
cultura do medo e a pequenez medíocre engendrada pelo salazarismo. Não houve
julgamentos dos responsáveis pelo antigo regime. Um manto como que tapou a
realidade repressiva, castradora e humilhante desse nosso passado recente. Como
se fosse possível apagar da mente e da história a realidade, sem que as
cicatrizes do passado reaparecessem aqui ou ali a testemunhar o que se quis
apagar mas que insiste em permanecer.
Quando não se faz de forma devida o luto, o morto e a morte virão assombrar-nos
sem descanso.
Com efeito, no tempo de Salazar, o país vivia mergulhado num tal
obscurantismo, que a existência individual nos tolhia quase por completo. O que
ditava a moral do salazarismo era uma sucessão de atos obscuros, com tanto mais
valor quanto se faziam modestos, humildes, despercebidos, onde não havia espaço
público e tempo coletivo visíveis, senão na eternidade muda das almas, segundo
a visão católica própria de Salazar.
Em muitos aspetos, o Portugal de hoje é uma extensão do antigo regime. É
um velho hábito do salazarismo que nos ensinou a irresponsabilidade –
reduzindo-nos a crianças, adultos infantilizados – que vem sobretudo da recusa
imposta ao indivíduo de se inscrever, porque inscrever implica ação, afirmação
e decisão com as quais se conquista autonomia e sentido para a existência.
Na ânsia desesperada de deixarem obra feita, indestrutível, tomaram-se
medidas «definitivas», criaram-se leis e instituições «irreversíveis» para a
construção da nova sociedade, no entanto, a parte essencial da não-inscrição
continuou viva, e toda a atividade frenética e delirante para inscrever a
Revolução – escrevendo a História – mais não fez que alimentar a incapacidade
de «inscrever» no mais profundo do inconsciente dos portugueses.
A pacificada vida social portuguesa vê a não-inscrição assumir os seus
privilégios em todo o seu esplendor. Grandes empresas que vivem à sombra do
poder político, ministros que saltam do poder para as administrações das
grandes empresas, grandes escritórios de advogados que «cozinham» leis à medida
das conveniências, parcerias negociadas com o sector privado onde o estado é
manifestamente prejudicado, inúmeras comissões de inquérito onde se perde tempo
e não se apura coisíssima nenhuma, mega processos judiciais onde quase ninguém
é culpado ou acabam por prescrever, medidas de austeridade gravosas que nos
impõem sacrifícios inúteis, e que nos arrastam para o abismo e, “se tudo se
desenrola sem que os conflitos rebentem, sem que as consciências gritem, é
porque tudo entra na impunidade do tempo – como se o tempo trouxesse, imediatamente,
no presente, o esquecimento que está à vista, presente. (…) as consciências
vivem no nevoeiro. (…) uma neblina presente que se apodera do interior da
consciência e rói, sem que ela dê por isso” (José Gil, Portugal, Hoje – O medo de Existir).
E o que é o nevoeiro? É a causa da não-inscrição ou esta existe por
efeito daquele? Parece ser impossível responder a esta questão. Vivemos
(talvez) perigosamente acomodados, indolentes, num coletivo de indivíduos
incapazes de agir, aceitando todas as tropelias e negociatas de uma elite de
indivíduos bem-falantes que nos dirigem como se nada fosse. “É a vida!” dizemos
nós para afirmar a nossa resignação e impotência, ao ver as coisas passarem
superficialmente à nossa frente e ficamos indiferentes e conformados, sentindo
que nada podemos fazer.
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