quinta-feira, 12 de novembro de 2020

GERALDO GERALDES – GERALDO SEM PAVOR.

 Figura semilendária da história de Portugal na época da Reconquista, personagem representativa do período de formação das fronteiras do país, terá sido um nobre nortenho de carácter difícil, que cedo abandonou a sua região para tentar a sua sorte ao sul do país nas lutas contra os mouros e liderando um bando de salteadores e aventureiros.

As suas correrias ou algaras não eram apenas sobre as populações árabes, mas incluíam também populações cristãs, sendo considerado, juntamente com o seu bando, proscrito do reino. Porém, em 1166, talvez já cansado da vida de um fora da lei, tomou Évora aos mouros e entregou-a a D. Afonso Henriques, prestando-lhe vassalagem e colocando-se assim, a si e ao seu grupo, ao dispor do seu Rei para aceitar o perdão ou castigo que este lhes quisesse impor, e aliviarem-se do longo desterro em que andavam votados.

Afonso Henriques folgou com isso perdoando a todos dos seus atos. Geraldo Sem Pavor juntou as suas forças às do exército português lutando ao lado de D. Afonso Henriques na tomada de Badajoz (1169), empresa que se revelou um desastre para as forças portuguesas e onde o soberano português, ao sair por uma das portas da cidade, entalou uma das pernas no ferrolho,  não podendo, com a dor, aguentar-se no cavalo, caiu, ficando prisioneiro dos leoneses.

Como se diz acima, Évora foi tomada por Geraldo, o Sem Pavor. A lenda a que este facto deu nascimento, tem sido posta em dúvida por alguns que, socorrendo-se à Crónica Conimbricense e Lamecense, não aludem uma palavra à história de Giraldo. A Crónica dos Godos diz unicamente que Giraldo Sem-Pavor com os salteadores seus sócios a tomou e saqueou, entregando-a depois a D. Afonso I. O escritor Alexandre Herculano, falando da conquista de Évora, diz que tal sucesso não seria de rejeitar.

António Feliciano de Castilho, nos seus Quadros Históricos de Portugal (págs. 45 a 48), narra esta lenda de forma admirável, pelo que tomo a liberdade de a transcrever aqui na íntegra:

«I — Na serra de Montemuro, a duas léguas para o nascente da cidade de Évora, existia no undécimo século um rude castelo, recém-formado no viso do mais alto e fragoso de quantos cabeços por esta parte se alevantam. Entre as suas ruínas, de uns trezentos passos de circuito, ainda hoje apelidadas Castelo de Giraldo, folgam os caçadores encalmados de se ir banhar no puro vento do céu, recostados em meio de uma espessura de medronheiros, carrascos, urzes, estevas, roselas, alecrins e rosmaninhos. Vário e saudoso é o quadro que os rodeia: para o sul, até às serras de Portel e Vianna, vastas campinas com suas searas e arvoredos, onde ressaem, aqui um antigo convento, recreação dos filhos de Loyola; lá, junto da igreja de Orega, as relíquias de um palácio, como tantos outros da província caído ao desamparo; e pouco avante a ermidinha de Santa Comba, onde afirmam piedosas legendas ganhara a virgem a palma do martírio. Se os olhos fogem do poente afrontados da multidão de outros cabeços bravos da mesma serra, vão descair consolados ao noroeste no formoso vale do oratório de Nossa Senhora do Monserrate, fundação e antiga acolheita espiritual dos proves ermitães, como lhes chamava a escritura, que esse terreno lhes doou no seculo XV. Mais a longe, inclinando para o norte, alveja a ermida de Nossa Senhora de Guadalupe. Banha pelo nascente os pés ao enramalhetado outeiro do nosso castelo a ribeira de Rio Mourinho, que o divide de Valverde, assento de uns nobres paços dos arcebispos, e de um humilde convento dos capuchos, fundação do cardeal D. Henrique, encolhido em fábrica, grandioso por fama de milagres. E rematam por esta parte o horizonte os gigantes pinheiros de S. Bento, filhos, segundo tradição, d'aqueloutro que, desde os tempos dos mouros, como que já preterido da morte, permaneceu até ao meio do século passado; e logo além dos pinheiros as torres da cidade.
Em uma noute do mês de maio do ano de 1166, perto do castelo, Giraldo estalava uma fogueira; o seu clarão só as estrelas lá por cima o descobriam; tanto era encantado o sítio, e apertado no recôncavo de um labirinto de rochedos, cômoros, e matas silvestres! Cerca da labareda, era alta noite, homens de duro semblante estirados, armas pelos ramos pendentes, cavalos de guerra e azêmalas de carga pascendo. Algumas raparigas aprestam ao lume uma refeição selvática de javali e caça brava, e, enquanto os rouxinóis trinam a espaços pelos cabeços suas namoradas porfias, vão cantando em meia voz xácaras mais de pelejas que de amores; nenhuma roca de linho ou de lã, nem um vagido de criança. Não é uma povoação fixa, parece uma daquelas pequenas sociedades que em nenhuma parte se aparentam com a terra por mútuos benefícios; para quem o mundo não tem norte nem sul, não há no tempo futuros nem passados. Nada de leis humanas é a sua constituição, o desprezo dos perigos a sua providência, e a sua fortuna não aquela que senhoreia e arrasta os sucessos, é n'eles e por eles, transforma as vontades, mas uma fortuna escrava que entre armas se leva à força para onde e por onde se quer. É finalmente uma daquelas cabildas que giram por entre os povos assentes, como os cometas errantes e excêntricos, infecundos e agoureiros, por meio da ordenada família dos planetas e sóis. Nada lhes minguava de quanto requer a primeira natureza; o pão ceifava-lho a espada, sendo o lavrador mouro e o lavrador cristão igualmente seus tributários; água e fogo lhes oferecia a terra; as covas e árvores abrigo e cama; a astúcia ou a força lhes granjeava companheiras e servas; e o castelo, obra bárbara de suas mãos ainda mais bárbaras, lhes segurava um refúgio contra as perseguições. Mil outras ventagens, como frutos de árvore silvestre em tempestade, lhes choviam da lança; e onde quer que acampavam, o terror do seu nome, ainda maior que a sua possança e malefícios, lhes servia de muralhas e baluartes. Seriam felizes se dos vizinhos troncos e penhas houveram nascido, se no peito lhes não morara coração que não caleja, como os ombros e mãos, sob o peso das armas. Mas o aborrimento, enfado e tristeza trasbordava então pelos rostos e esse exprimia pelas posturas e movimento de todos aqueles homens; e posto que esta noute, como outras muitas, só por espancar o tédio com a variedade, houvessem trocado o recinto da fortaleza pelo desagasalho da brenha, a memória e consciência de sua miséria os seguia e estava com eles, e as noturnas carícias da primavera tão malogradas escorriam por seus sentidos, como fala de donzela por um coração desfeito de anos. Por crimes seus se desterraram do seu Portugal, suspiravam pelas casas e famílias que mais não veriam, e onde nem talvez a amizade, o amor, nem o parentesco se atreviam de vergonha a nomeá-los. Eram esforçados como o seu século, e cavaleiros como o seu Rei; e fora das lides do seu século se consumiam em perigos sem glória, enquanto seus irmãos em roda da sina de D. Afonso destruíam os inimigos da fé, se enriqueciam de despojos e fama, firmavam e dilatavam o Estado. O Minho e o Mondego, o Douro e o Lima vinham sussurrar em todos os seus sonhos; e os seus dias se arrastavam eternos pela aspereza das serranias. O ócio, a noite e a solidão são paraíso de anjos para os eremitas que também nesta hora velam na vizinha serra de Ossa; mas para os bandidos de Montemuro o ócio, a que de alguns dias a cá os condena a ausência do seu Capitão, mais lhes é suplício do que folga; a solidão que os cerca lhes representa o desamparo em que se puseram de céu e terra, e a calada da noute deixa ouvir a cada um os rugidos da consciência: carecem do tumulto, do latrocínio, do espetáculo de alheias penas para se aturdir, e anseiam afogar as memórias negras do seu passado seja em que for, embora em novas negruras, em novos sangues, em novas lágrimas.
Que faz Giraldo Giraldes seu chefe que aí os mandou esperar? partiu sozinho e não volta. Por terras do Alentejo andam armas vencedoras de El-Rei; ¿dar-se-á que se lhe fosse arremessar aos pés, suplicar-lhe perdão do crime que, despojando-o da graça e valimento do Monarca e entregando-o às iras da justiça, o forçara de renunciar o reino florescente pelo exílio escabroso entre infiéis, o nome de D. Giraldo Sem-Pavor pelo do salteador Giraldo, a companhia dos heróis pela dos bandidos? Enquanto eles na alta brenha, como abutres em ninho à espera da mãe, se impacientam a aguardá-lo, ¿pactuará ele, em câmbio, da sua vida e fortuna, entregá-los nas mãos de seu comum inimigo? virão já marchando sobre seus vestígios pelas intrincadas sendas da montanha esses destemidos caçadores de homens, que ao primeiro raio da manhã se verão negrejar em coroa densa e movediça por todos os cabeços circunvizinhos? Tais começavam a ser as fantasias, se não as murmurações do bando. Fáceis vêm desconfianças de traição aos que de traição vivem e romperam com todos os deveres de homens; e a distância a que sempre os deteve a alma taciturna do chefe, ainda quando a comunidade de perigos e interesses mais pareciam uni-los, recordando-lhes no meio da presente igualdade as sempre suspeitas e nunca bem esquecidas desigualdades entre o rico Filho d'algo e populares e vilões que todos eram, relaxava já nas vontades o laço da obediência. Eles, que do mais poderoso Rei da cristandade se haviam redimido, como se não indignariam de depender de um igual que, se ainda não atraiçoava, já pelo menos trascurava ignominiosamente os deveres que lhe eles sós impuseram quando com uma palavra lhe conferiram o direito sumo de os capitanear, porque em fim de vassalo perseguido eles o alçaram a Rei de homens livres; foram estas espadas que pendem vilmente à cinta das árvores, as que saudaram cetro a sua lança e converteram os penhascos em trono que ele agora parece desdenhar. Se algum naquela hora houvesse ousado arremessar pelos lábios este pensamento de todos, quebrado era o encantamento, e o império do capitão perdido sem remédio; mas o respeito devido à sua provada mui valentia, o terror que inspirava por uma parte a sua severidade e por outra a grandeza do seu génio, que parecia adivinhar tudo, calcular tudo e tudo vencer, os oprimiam como um fado, e os agrilhoavam a seu pesar no fundo do ermo, como condenados no abismo.
Soa de longe um grito, acode-se em tumulto às armas. Foi o brado de uma das esculcas noturnas, denunciando ter ouvido passos vir subindo contra o arraial; passos de um vulto, que perguntado — Por quem? — não responderam nem se detivera. Acendem archotes, montam a cavalo, vão-se arremessar contra o perigo desconhecido e reforçado pelos fantasmas da noite, com o denodo de quem tomou por vida o barateá-la a todo o lance, e não podendo já aspirar a restituir-lhe a doçura, folga ainda de a sentir pelos grandes abalos — “Cristãos ou mouros, pouco ou inumeráveis, a eles companheiros! há dias que os nossos corvos se não banqueteiam; amanhã quando o sol os acordar festejarão o bom almoço de que lhes haveremos carregado estas encostas.” — E já de espora fita e rédea larga se abalavam, quando da parte d'onde se ouvira o rumor aparece um homem desacompanhado que, levantando a voz os fez a todos parar: era Giraldo. E que outrem houvera ousado ou ousando houvera conseguido dobrar pelas trevas enriçadas veredas daquele labirinto e chegar são e salvo ao arraial dos salteadores? Era Giraldo, que havendo partido armado e cavaleiro, volvia peão com as armas sumidas sob a capa, e por cima dela pendente ao lado uma tiorba, como trovador que de aldeia em aldeia e por alpendres de casais, em horas de sesta e do sol posto vai cantando façanhas, amores e peregrinações de guerreiros em longes terras. Mas o seu rosto nada perdeu do costumado império, um sinal da sua mão desarmada faz que todos se apeiem e esperem em silêncio as suas ordens: breves são elas, porque Giraldo não conversa senão com a sua alma, e as razões dos seus projetos não é jamais ele senão o êxito quem as explica. — “Companheiros, despedir esta noite da montanha e das tristezas; e aparelhar para amanhã me seguirdes!” — Ditas estas palavras, subiu ligeiramente ao castelo, e se recolheu sozinho no seu silvestre palácio que uma cama de feno enchia todo, que nenhuma porta defendia, e em cujo teto, antes de se deitar, devassou com a mão uma larga fresta, ou para que fosse a arvorada quem o acordasse para um dia enfim de felicidade, ou para considerar pela derradeira vez as estrelas da sua serra, as confidentes únicas de suas noites afanosas, as celestes influidoras de seu projeto heroico. Dentro em pouco os lumes uns após outros se extinguiram, todas as vozes emudeceram, e ao ténue ruido do orvalho sereno pelas folhas mil sonhos contraditórios de peleja e delícias volteavam pelo profundo sono do campo.
II. Fora, e não longe dos muros da mourisca Évora, contra o noroeste, no cume de outro vistoso outeiro que chamam de S. Bento, avultava uma torre alta, redonda, de grossa cantaria, sem porta nem entrada por parte alguma. O passado século na sua infância ainda a saudou inteira; o presente já a herdou destroncada, senhoreando ainda, todavia a cerca das vizinhas religiosas a cavaleiro do seu muro elevado; o século que vier não herdará nem alicerces. Com a solidez, com a figura e com o fechado imaginara o arquiteto árabe fadar-lhe inviolabilidade e eternidade; e de todas essas pedras que amontoou só um resto coberto de ervas sinalará ainda alguns dias o sítio; o mais se transformou pelas encostas em moinhos, que volteando ufanamente as suas grandes velas brancas, e cantando ao som do trabalho, parecem uns contra outros escarnecer do decrépito avarento de quem repartiram os bens para os desfrutar. Por aquela só parte se podia a cidade moura temer de algum súbito acometimento, que por todas as outras dominava alta e desafrontadamente, como inda agora um estendal mui chão e patente de planícies. À diurna e noturna vigilância da torre estava, pois, confiada a segurança da primogénita e princesa da província Transtagana.
Dentro n'esta torre reside um valente mouro com uma filha moça e formosa. Desterrados voluntários do comércio dos seus, anos há que cifram o mundo em tão estreito espaço. Por prémio do muito que em sua mocidade servira com as armas, pediu ele a honra de ser, enquanto vivesse, a vela e providência da cidade onde nascera; e esta honra fora facilmente concedida à sua mais que provada lealdade. O pai que já nada para si ambicionava, afora o ver crescer em seguro as graças da filha, e a filha que não imaginava ainda outra felicidade além da que possuía com seu pai, habitando assim um com o outro tão fora e tão por cima das muradas humanas, como que tinham contraído uma natureza mais sublime.
Limitadas em número as suas afeições, as pouquíssimas que ainda lhes restavam haviam adquirido uma força invencível, e ao mesmo tempo uma pureza, uma luz e uma serenidade, que da maior vizinhança do céu pareciam filtradas. O amor da terra natal e da religião de seus maiores eram as principais d'estas paixões: as gloriosas histórias e o alcorão, o recordar, o orar e o esperar as suas perenes ocupações naquele ermo aéreo. Sussurrava a cidade como um enxame confuso que só negoceia o viver, enquanto eles, como duas aves no cume de uma árvore inacessível, viviam mais do que a vida, viviam suas fantasias, viviam harmonia e paz, viviam coração e viviam alma, que é de todos os viveres o mais chegado a Paraíso e o mais para invejas, se de fora o entendessem. Ao seu amor de pátria nada igualava a não ser o seu ódio a cristãos. Com o longo descostume do verdadeiro mundo, a imagem de seus conterrâneos, despindo-se insensivelmente de quanto no comércio dos homens produz tédios, cansaço e aversão, purificada, perfumada pela saudade, divinizada pela religião, facilmente se lhes convertera em ídolo dourado, enflorado, digno de todos os sacrifícios. Cousa é a pátria que mais e melhor se ama ao longe do que ao perto, suspirada do que lograda; a ideia, porém, dos cristãos portugueses pelo contrário se carregara e denegrira; a memória e a fantasia desocupadas, exagerando-a à porfia com quanto podiam, a haviam transtornado n'uma ideia completamente monstruosa e infernal. Não havia crimes possíveis que nos inimigos os não supusessem, como nem virtudes e excelências que não figurassem nos seus. N'estas convicções os confirmava a solidão: dos opostos afetos que delas nasciam os repassava cada vez mais a própria vista de cada pedra do edifício, cuja alma eram, documento e monumento da irreconciliável inimizade dos dous povos.
À seguinte noute após aquela em que Giraldo se recolhera a Montemuro, finda a derradeira refeição e oração, “Filha, disse o velho à virgem, agora mais que nunca importa velar. Grande é Allah de quem mana toda a virtude; com tantos olhos da alma havemos de observar todo o arredor, quantas são as estrelas que espreitam do alto o segredo das terras. O cavaleiro que ontem vimos passar para a cidade, ao entrar e ao sair deteve-se a considerar a torre; cristão era, raça condenada, sem fé nem verdade; e o que passou com o alcaide bem mo ouviste ler nesta carta que o mesmo alcaide nos enviou com o último mantimento que içámos à torre. — Não há Deus senão Deus e Mafoma é o seu Profeta; sabei vós outros, atalaias da torre posta à cabeceira da cidade como mãe que não dorme ao pé do berço do filho primeiro, sabei como é vindo a nós um Nazareno por nome Girald ben Girald, e por apelido Sem-Pavor, Capitão dos ladrões acastelados na montanha, que tantas vezes fazem entradas por terras, assim de mouros como de cristãos, com os quais ladrões (que Deus confunda) trazemos nós pazes, até que possamos de súbito um dia colhê-los na rede da nossa vingança. Sabendo ele como o tirano de Coimbra ben Enrik, dispôs submeter a seu jugo esta nossa província, e entendendo que igual perigo como a nós o ameaçava a ele e aos seus, gente criminosa, fugida à justiça da terra do seu nascimento, a nós por divina mercê alcaide de Évora nos propôs a unir as suas armas com as nossas, para comum defensão e complemento de vingança estrondosa, que por muitas e graves ofensas jurara em sua alma sacar do tirano. Duvidamos nós de sua fé, porque se por uma parte é revel, perseguido e desterrado, por outra o consideramos nobre, cavaleiro e saudoso da pátria, e primeiro foi nosso adversário que seu ofendido; todavia trocámos com ele a requerida promessa de mútuos auxílios. Pelo que agora vos recomendamos sete vezes, e novamente vos tomamos juramento pelas asas escuras do anjo da morte, e vos emprazamos para a ponte delgada do oceano de fogo, no dia da conta, em que todo este povo se vós o traísseis iria vozeando pender-se da orla da vossa alquicé, e precipitar-vos de chofre no golfo das chamas, que veleis dia e noite e nos deis rebate de qualquer novidade sentida de longe.» – «Meu pai (interrompeu a virgem, fechando-lhe nas mãos a carta, e tomando-a por cima da cabeça) sobre mim caia todo o sangue da nossa cidade, e à hora da morte me enlutem a alma com as águas do infame batismo, se jamais por nosso descuido entrar a ruína aos vitoriosos filhos do Profeta. Minha é esta noite, que ma prometestes; ide-vos a descansar, e sonhai felicidades, que eu as gozarei ainda maiores, mantendo sozinha no meio do enlevo das trevas caladas os altos destinos da nossa cidade.”
Só está a formosa moura de pé ao umbral da ventana, bebendo por olhos e ouvidos a escuridão e silêncio dos campos. O sono que ela havia de dormir dorme-lho a cidade, e o santo orgulho que por isso lhe alvorata o peito, quase tão docemente a dessossega como a outras as amorosas fantasias de sua idade. Virgem até no coração, até no pensamento, se alguma cousa invejasse mais, seria só a glória de vestir armas e de pelejar contra cristãos, como já outras muitas de seu país, celebrados nos cantos dos poetas. A alma do pai se infundiu na sua; o seu seio só palpita com as relações das pelejas; o seu olhar só se inflama vendo passar por longe algum cristão, e nesses momentos dera ela todos os palácios de safiras dos contos orientais, todas as músicas e aromas das sultanas de Córdova, por ter o olhar do basilisco. Todas as suas súplicas ao profeta imploram a peste e a destruição sobre o nascente reino dos descrentes portugueses. Nos êxtases do seu zelo religioso cuida até que presenciaria com delícias a tomada, o extermínio, e incêndio de uma dessas cidades infiéis; as mães arrastadas pelos cabelos nos regatos de sangue, os filhos longe delas, esmagados sob os pés tumultuosos dos cavalos; os soldados da cruz trazidos em cadeias para virem em lugar dos brutos puxar nos longos dias de verão as gemedoras nós nas hortas e pomares dos arrabaldes. E, todavia, não é ela cruel; mas a piedade para com o pai, único ente vivo do seu mundo, e para com a pátria de que ele a nomeia anjo, lhe dá toda a crueza; o fanatismo fortificado pela solidão ocupa todo o lugar que fora dali sentimentos mais doces e humanos haveriam senhoreado. Oh! quem assim odeia os inimigos d'uma pátria que não desfruta, que não fizera amando! olhos que assim se deleitam em perder-se pelos ermos da noite ao pé de um velho adormecido, que não exprimiriam em mais doces vigílias! Mas essas vigílias que aí vão por baixo de tantos tetos, não as inveja ela, que as não conhece; do amor nada tem ouvido mais que o canto d'alguma avezinha que no meio do voo para a descansar no cimo da torre; dos prazeres só sabe o verdejar dos montes apartados; da primavera, dessa quadra tão irmã e tão uma com os seus anos viçosos, e só as virações que vêm como por dó, contender com alguma florinha que, nascida entre as pedras do edifício, desabrocha como ela em desterro, e desenvolve formusura nem dela própria conhecida.
Mas na véspera por junto da torre passou um peregrino, e sentando-se defronte a descansar à vasta sombra fresca e rumorosa do grande pinheiro, cantou ao som de tiorba um romance, cujos sons e palavras lhe desceram suavemente ao fundo da alma e lh'a trazem desde essa hora enlevada.

Viva Allah; foi meu padre um bom mouro,

Moura madre me deu de mamar.
Moura fada fadou-me um tesouro,
Moura virgem mo tem de entregar.

Honra a Allah que o provir nos decreta,

Quando os olhos abrimos à luz!
Tu és glória aos fiéis do profeta,
Eu horror aos de Afonso e da Cruz.

Manda Allah que eu te colha aos meus laços,

Fénix rara, em tão próprio jardim.
E que só ao sentir-se em meus braços,
Virgem moura, os meus males deem fim.

Voto a Allah, meu laude cansado,

Se consigo esta flor das huris,
Que hás de em Meca pender marchetado
D’ouro e pérolas, de prata e rubis.

Allah bom, Allah forte, Allah grande,

Lá do sétimo céu me ouça já;
Um pelo outro a descanso nos mande
Cedo, ó Virgem mimosa d’Allah.

E ditas estas trovas se partira, voltando-se muitas vezes para a torre e ventana onde ela ficava. Desde então mais o não havia avistado senão por sonhos. Nos poucos momentos que dormira representava-se vê-lo, sem saber como, entrar na torre, e tomá-la em braços; e sempre naquele ponto o tumulto do coração e um terror involuntário a despertara sobressaltada. Nada ousara confiar ao pai nem quási a si própria de tão estranhos desvarios; mas criada com as superstições mouras, costumada ao alcorão, onde sonhadas vêm as profecias, mulher, moça, donzela, e imaginária como quem por falta de universo revolvia do contínuo do seu interior, debalde procurava dar de mão a um pressentimento confuso d'algum grande lance que a aguardava com aquele desconhecido. Pela primeira vez agora sente estreita a sua prisão, e segue com a vista as nuvens que se desvairam pelos ares livres. A expressão do rosto atento do peregrino não a entendera ela; feição por feição a está recordando, procura por algum modo traduzi-la ou rastrear-lhe sequer o sentido; mas o bem-querer que os versos expressavam e pediam não se lhe figurava que morasse no mesmo coração d'onde eles pareciam rebentar. O olhar poderoso daquele mouro a fascinara apossando-se de todo o seu destino; em qualquer parte não sabida para onde os passos o levaram, onde quer que dorme ou vigia ausente, ela está junta dele, ajoelhada como escrava aos pés do senhor ofendido. Se ele volvesse nesta hora a assentar-se na mesma pedra, pressenti-lo-ia de longe, conhecê-lo-ia na escuridão, e teme até que, atraída por esses dois olhos resplandecentes nas trevas como duas estrelas, absorta e arrebatada como a ave que de ramo em ramo se despenha na boca da serpente, deixaria a alampada só velar na torre junto ao pai adormecido, e desdobrando a escada levadiça aos sons do alaúde, desceria saltando atropeladamente a encontrá-lo, e cravar-lhe um ferro nas entranhas para revoar à torre, acordar o velho, refugiar-se-lhe no peito, e dizer-lhe ao ouvido: “Salvei-te a tua filha: defende-me, esconde-me, que trago as mãos ensanguentadas.”

Aqui, correndo a espertar a luz que, ainda mais cansada de velar do que ela, já começava a ondear sombras perturbadas no aposento, foi junto ao leito procurar no rosto sereno e forte do ancião adormecido mudas inspirações da paz e valor que lhe faleciam. Depois sorrindo de si mesma, embaraçou o escudo, empunhou e meneou convulsamente a lança, e repondo novamente lança e escudo, e chamando-se louca, voltou para a ventana a desempenhar-se de sua penosa tarefa. Nenhuma luz surdia lá das janelas de Évora, nem dos casais pelos montes ao longe; já os galos responderam ao canto da meia noute que entoa o galo invisível e celeste do Profeta. O insensível lentor da noite, o rumorejar monótono das folhagens com o frouxo meneio das virações relaxam pouco e pouco asas ao alvorotado da solitária. No rebate da janela se reclina contra o campo confiado à sua vigilância, com a face sobre o braço curvado a outra mão cerrada ao peito, e os olhos nas estrelas por onde, como por umas serranias de diamantes, faz subir suas orações cândidas ao trono de Allah; até que o cansaço, o silêncio, a hora e o seu destino lhe fecharam os olhos; sono profundo a afogou, e sobre a grande cidade só ficou vigiando, como sobre um mausóleo desamparado, a chama incerta d'uma desamparada alampada.
Enquanto sonhos talvez de antigos combates, talvez das glórias do maomético paraíso, enfeitiçavam o descanso do mouro, era o culpável sono da virgem imprudente atravessado de visões, carrancudas como fantasmas, pesadas e frias como a morte. Disséreis que as nuvens, que volteavam cada vez mais densas pela face das estrelas, e atormentadas do vento, se transtornavam à porfia em mil formas agoureiras e monstruosas, pelas pálpebras transparentes lhe estavam coando para os recôncavos da alma as suas sombras, e que as ideias esvoaçando soltas do jugo da razão se infundiam nelas, ou as trajavam para a atormentar com uma cena fantástica de inferno. Eram sono e sentidos horrendamente misturados; era aquele estado, que ainda ninguém, mormente pela noite das grandes paixões, deixou de experimentar, em que a mentira e a verdade, o interior e o exterior, o real, o possível e o impossível se conspiram para nos desatinar. Todos seus membros estremeciam, grandes gotas geladas lhe escorriam da fronte, o peito arquejando ansiava sacudir de sobre si a mão dormente que o esmagava com um peso igual ao do mundo. A voz procurava, sem encontrar, uma fuga por entre os lábios convulsos até ao ouvido paterno, e a cabeça desesperando-se imovelmente por se agitar, anelava ferir-se contra a pedra e sacudir n'um grito o torpor em que se sentia finar. Os esforços da vida contra a morte começavam enfim a prevalecer; já sopesava o braço; já despregava e erguia o rosto; já se descerravam os olhos; quando entre as visões do ânimo não bem apagadas, e o aspeto do céu carrancudo, creu ver, viu, vir surgindo fora da torre e cosida com ela um braço nu e forçoso, uma fronte larga e requeimada, uns olhos reluzentes, um semblante como o que em sonhos a perseguiu. Ainda mais aterrada com esta aparição aérea, a qual sem asas e suspensa do vácuo, a comtempla absorta com os olhos quase pregados sobre os seus, e agitando-lhe já os cabelos com a respiração afanosa, retrair-se foi o seu primeiro instinto; mas o braço, como garra de leão a aferrou súbito; o segundo ímpeto precipitar-se; aguentou-a o próprio peito de que fugia. Nesse instante a desesperação lhe restituiu o que o pavor lhe havia roubado; com forças maiores que do seu sexo, e proporcionadas a um lance tão apressado, fechando os olhos por não ver o seu inimigo, se travou estreitamente com ele arca por arca, e se empenhou entre os dois uma luta mortal de que eram arena uma estreita lájea e o ar profundo, e uma luzerna agonizante o único espectador. O seio nu e melindroso da virgem tressua contra um peito cerdoso, fornido, armado de cicatrizes; a face tenra se magoa nos tufos de umas barbas hirtas; um ombro requeimado repele um ombro de marfim; só são iguais os dois corações que um a outro se sentem bater atropelados e que o mesmo fogo tem abrasado das mesmas fúrias. O mais profundo silêncio envolve este tenebroso combate. Prova cada um o extremo das forças que a posição agra e temerária lhe consente empregar, e parecem imóveis por algum tempo como duas estátuas abraçadas. Em qualquer outra parte o varão logo ao primeiro encontro houvera roto o equilíbrio de contenda, ou antes, o cavaleiro costumado a guerrear cavaleiros, desdenhará vitórias tais d'uma donzela, mas aqui a desvantagem da sua posição contrabalançava imensamente a melhoria do sexo; uma cunha mal entalada entre as juntas externas da cantaria da torre, era o único pedestal que o sustinha sobre um abismo; com um só dos pés descalços se aferrava a ela, com o outro procurava, palpando na parede lisa, uma pedra ressaída, uma falha, uma ervinha. Com um só dos cotovelos se chumbava ao rebate da tão defendida e porfiada fresta; a cada esforço para alçar sentia gemer a cunha, curvar-se, e lascas de caliça cair ressaltando ao longo da parede até ao alicerce. A moura, com o meio corpo debruçado sobre o seu, temendo menos despenhar-se com ele do que vê-lo entrar consigo, lhe aumentava o peso, lhe encobria a passagem, e arrimando no ir e vir da luta, as espaldas ora a um ora a outro umbral, lha trancava; e com a face lhe vendava os olhos, com os dentes procurava devorar-lhos. Oh se ele pudesse alcançar à mão a espada que se lhe balança e tine ao lado, a desesperação o fizera talvez cometer uma vilania! Cresce e reveza-se de um a outro a incerteza do êxito; ora pendem balançados para o campo ora para o aposento, como dois arbustos unidos que um redemoinho embalouça na alta ameia d'um castelo derrocado: Nenhuma ou uma só destas cabeças saudará o novo dia, e qualquer que sucumba, grandes e alheios fados afundará consigo! Tal certeza lhes redobra de contínuo as forças.
A muçulmana começa a animar-se pelo seu longo resistir, rouqueja surdamente o nome do pai e o de Allah, solta-se do contendor, retrai-se; como vaivém sacudido contra muralha, volta logo com todo o peso a embater naquela massa que já sente vacilante e que não compreende como tanto haja podido suster-se sem alicerce no meio dos ares. Ao mal esperado encontro, estremece o valoroso; o seu peito que já se debruçava para galgar, se despega do amparo da pedra; com a direita estendida procura desacordadamente onde se apegue e não atina; vai precipitar-se… quando por um arrojo temerário, enovelando todas as forças no interior, repulsando com o pé a já quási inútil cunha que lho sustentou e estala, pula, retoma com um braço a janela, com o outro colhe pelo colo a destemida que já voltava a segundar o tiro; aperta-lho como em uma tenaz, sacode-a duas, três, quatro vezes como um gigante que procurasse desentalar um dragão d'entre penedos; pouco a pouco a curva, a debruça, já os olhos da sua preza não podem ver o céu, nem a luz da torre, mas só o anoutecido fundo do precipício. Por um momento pendeu aquele corpo librado entre a vida e a morte; um leve e derradeiro toque rompeu o equilíbrio, revoluteou sobre si mesma! Os ecos vizinhos não ouviram mais do que um gemido curto e estranho, um fracassar sucessivo de cunhas, e logo um baque soturno que não souberam repetir; e tudo recaiu no silêncio. Às trevas agradece o vencedor o encobrimento de tal vitória, e só lhe pede assaz espaço para lavar em correntes de mais digno sangue esta última sobre já tantas outras nódoas do seu nome. Com a espada apertada no punho, entra senhorilmente pela torre; mas a luz, como que fiel às mãos que a acenderam e a que sobreviveu, longe de lhe facilitar o conhecimento do recinto, lho turva de repentinas sombras, revolvendo-se entre as vascas do apagar-se. A um de seus clarões instantâneos, percebe ainda intacto o facho com que nos perigos da noite era dever da atalaia fazer sinais e almenaras do alto da torre, e pelos movimentos e direção da chama indicar às vigias internas da cidade a que parte, com que forças, e porque modo importava acudir. Acende-o, dá com o mouro adormecido. “Torre maldita, exclama, não terás para oferecer a um braço cavaleiro senão infâmias?” Viu armas; considerou um pouco se o acordaria, mas refletindo que um só adversário mal valia o tempo tão apertado e precioso que despenderia a esperá-lo, de um golpe lhe fez saltar a cabeça. Corre com a luz exploradora a todas as partes, e certo de que ninguém vive no edifício, desenrola a escada levadiça, crava na ponta da espada, sem a olhar, a cabeça defunta, desce velozmente. Ao pousar pés em terra, é um cadáver o primeiro objeto em que topa! Afirma-se, reconhece a moura que dorme n'um banho de sangue o seu sono último; deu-lhe um suspiro. “Tão moça, formosa, e sem culpa!... oh gloria!... oh pátria! quanto muitas vezes custais caro!” Foi um raio de piedade que rompeu por entre as nuvens tormentosas do pensamento até à flor do coração do guerreiro, e antes de lho haver podido aquecer, se esvaiu. Se há horas bem-aventuradas que não admitem penas, outras há tão negras que nenhum reflexo benigno as pode matizar. Todo abrasado na sede de um futuro para o qual tão largos passos deu já por uma vereda de covardias, nada pode haver nesta noute que o detenha. Com o gume que destroncou a cabeça do pai, decepa a da filha; a mesma espada embebe duas vezes o mesmo sangue, e as duas almas naquele momento reunindo-se por ventura para deixarem juntas o mundo, ou para ficarem girando em redor da sua torre que não puderam salvar, folgariam de ver na inimiga mão reunir-se ainda uma vez aqueles rostos que só um ao outro se olharam tantos anos, que exprimiram sempre os mesmos pensamentos e as mesmas vontades.
Assim descia Giraldo seminu, qual havia trepado à torre, pela encosta do silencioso outeiro: sob as suas sapatas ferradas, que junto aos alicerces recalçara, ressoa o caminho, que a largas passadas o despede. O tinir da espada o importuna como um escárnio; carregada e feia vai a sua alma como um espelho da noute; n'uma e n'outra só uma estrelinha incerta reluz ao longe. O vento que doudejando por entre os ramos não vistos, tantas vozes humanas arremeda a ouvidos perturbados, de quando em quando, o força a deter-se para escutar. N'um d'estes momentos figurou-se-lhe ouvir já as falas de sua gente, a quem intimara o mais profundo silêncio, e estremeceu e corou pensando nos despojos que de sua vitória lhes trazia. Esteve para os arremessar; mas alçando na mão e encarando pela primeira vez aquelas duas cabeças juntas, lhes sorriu, um sorriso triste, que dizia: “Porquê? não eram as vossas mortes necessárias condições para uma grande façanha e uma felicidade ainda maior? Oh que vos invejara eu, se não fora este meu sonho do porvir! Na pátria morrestes e pela pátria; morrestes puro e sem remorsos; morrestes onde amastes e com quem amastes. As piores amarguras da hora suprema, nenhum de vós as tragou, nem os terrores do expirar, nem as saudades do mundo, nem a pena de testar lágrimas a quem só se desejaram alegrias. Tu findastes dormindo, tu combatendo e esperando; ambos perto, nenhum aos olhos do outro. E agora, enquanto eu, vivo e vencedor, não tenho um rosto de mãe, de filha, ou de amigo onde encoste esta cabeça condenada, esta face enrugada antes da velhice, estes lábios desafeitos de branduras, os vossos rostos se tocam, e o mesmo vento desabrido parece estar folgando de vos emprestar uma sombra de vida e amor, quando entre mescla molemente as ondas negras d'estas madeixas com a prateada espessura d'estas barbas. Se alguma cousa sensitiva permanece em quem viveu, dos três que descemos da torre não sois vós, não, os mais mal a fortunados!”
Entretanto emboscado em um souto, nas fraldas do outeiro, os bandidos de Montemuro esperavam e desesperavam. Para que fim desampararam o seu castelo da serra? ¿Porque se lhes mandou que trouxessem, além das armas bem aparelhadas para ferir, uma multidão de paus curtos e delgados, indignos de suas mãos, incapazes até para pelejas de mininos? e porque razão despartindo-se deles, antes da meia noute, se despojou o capitão da mor parte de suas roupas, se enfeixou em ramas verdes, levando além da espada e de uma lança altíssima, alguns d'aqueles mesmos paus, constante assumpto de seus motejos? Saudades teimosas da pátria, asperezas de vida, e penas sem desafogo nem esperança, ¿transtornar-lhe-iam a cabo o juízo, e estarão eles, eles terror forte do Alentejo, eles javalis de Montemuro, representando sem o cuidar um arremedilho ridículo de um comediante? No meio deste cuidado geral cochichando e papeando todos em meias vozes, soa de repente uma que os emudece. “Valorosos, exclama Giraldo, minha é a torre da atalaia; eis-aqui os que a mantinham! Minha e vossa será, portanto Évora ainda esta noute, e amanhã teremos um presente de Rei para oferecer a D. Afonso em troco de nos restituir, como espero, a pátria. É o derradeiro empenho em que vos meto; havei-vos nele como nos demais, e fiai o restante da fortuna, coroadora certa dos arrojos magnânimos. Pelo que já me há servido, julgai se podemos ou não confiar nela. Enquanto me vós suspeitáveis ou traidor, ou inconstante, ou cansado, preparava eu só comigo os meios para a redempção de nós todos, sem que nem vós, nem os inimigos me adivinhassem. Enganando, sob color de fingido interesse, o alcaide nosso falso amigo, visitei e estudei a cidade, suas entradas, saídas, forças e indústrias defensivas. Disfarçado em peregrino, sentado ontem em face da torre que me importava reconhecer, com um cantar mouro ao som d'alaúde atraí à janela os guardas para ver ao sol os adversários que nas trevas havia de destruir; e enquanto me eles contemplavam do seu asilo inacessível, debuxava eu na memória as juntas das pedras que me haviam de servir de escada. Tudo saiu como o eu traçara. O escuro dos ramos de que ainda agora me vesti, ajudado do negrume dos ares, me consentiu volver lá sem ser notado; junto ao pinheiro aguardei se adormeceria a vela; mal a cri dormida, socorrido das cunhas, e fazendo firma na lança, subi, e vo-lo repito, estou senhor daquela verdadeira chave da cidade, com a qual juro abrir-vo-la antes de uma hora. Se alguém há que tema entrá-la comigo, que fique, e no seguro destas moutas ouvirá de longe o alarido a nossa vitória; e se até os ecos de guerra o assustam, parta, que todos nós lhe abriremos caminho; parta, e vá-se acolher a Montemuro entre as mulheres.” — Todos eles levantaram as vozes e as armas jurando segui-lo; poucos minutos após, só havia entre aquelas árvores duas cabeças mortas que pareciam surgidas de sob a terra, para escutar ao longe o estertor de uma cidade. Os cavalos corriam à rédea larga para um posto assinalado, e o mais da gente, semelhante a uma nuvem densa, que sem ruido aloja em si o temporal e o leva às cegas por onde e para onde apraz ao vento, ascendia rápida e silenciosamente com o Capitão pelo caminho da torre, contra as muralhas de Évora.
III. Um edifício sobrepuja dentro na cidade a todos os tetos, calado como toda ela, mas não como ela adormecido; é um como ouvido e olho que o grande corpo do povo tem sempre de fora da coberta do seu leito enquanto descansa. Às esculcas desta segunda torre toca explorar a larga campanha de que a povoação se rodeia, receber da torre externa no outeiro de noroeste os sinais de acometimento por aquela parte, e havida certeza ou receio de novidade, dar rebate aos moradores. Eis que lá de cima a sentinela do quarto da modorra vê arvorar-se inesperadamente um facho na coroa da torre redonda! Sobressaltada com o despontar de tão mal agourado cometa, não tarda em lhe responder com outra igual chama que “alerta está, que ainda, porém não alcança pela calada da noute rumor algum, nem atina para que sítio importe dar repique aos homens de armas.” Giraldo (ele era) tão encantado com o lume do mouro quanto o mouro assombrado com o seu, lhe significa por novos e sucessivos sinais, “haver passado inimigo que lá se vai correndo para os plainos, fora das portas do nascente.” Neste momento, a uma bafagem que soprou daquela parte, ouviu a sentinela claramente um frémito de cavalos e armas vir recrescendo contra o muro. Para acudir à trombeta de rebate largou o facho, o qual Giraldo vendo cair para fora ao longo da torre, que branquejava e se escurecia sucessivamente, disse, arremessando o seu a larga distância: “Assaz conversaram guerra as torres com suas línguas de fogo; agora a nós pertence, a nós varões fazê-la e acabá-la com braços de ferro. Avante! caída é a estrela de Évora, e sumido para sempre, como raio, o nosso infortúnio!”
Aos arrastados rugidos da trombeta, seguiu a voz estrondosa da atalaia, clamando sem cessar alarma, alarma, e denunciando a porta e lanço do muro para onde urge confluir os socorros. De instante a instante clareia o tropear da cavalaria; a trombeta e o pregão da vigia se revezam com mor fúria, ecoando pelas ruas ermas e tenebrosas. Por baixo dos tetos já lavra um rumor confuso, já vultos alvos vêm assomando pelos eirados; já aqui e acolá se descerram portas e estampam nas frontarias opostas uns movediços painéis de luz, onde desaparecem e reaparecem tecendo-se e correndo confusas figuras de terror, homens que se vestem arrebatadamente, mulheres que lhes trazem alfanges e broqueis. Já os tambores surdem, e discorrem tumultuariamente todos os caminhos; o fragor de um rufo geral inunda e estremece a cidade até às íntimas partículas dos edifícios e dos homens, como uma fervura em cachão atormenta o vaso e revolve quanto nele se encerra; e por entre este som grande, poderoso, escuro, atravessam solitários os gritos e gemidos dos clarins, como os corvos de tempestade pela amplidão da tempestade. Agitadora de perigos é a noute; lembram-se de D. Afonso e da miserável tragédia de Santarém. Uns se armam e correm oferecidos a toda a fortuna; outros se detêm assombrados em suas pousadas, incertos se mais convém morrer defendendo-as de dentro, se desempará-las pela salvação comum; e ao mesmo tempo que os vizinhos inquirem aos vizinhos e aos desconhecidos que passam, sobre o que ninguém conhece, e os transes do coração se trocam nas falas em mal fingidas afoutezas, o Alcaide com um bom número que já chegou a congregar de pelejadores resolutos, espera em cima do muro e com o ouvido atento a tornada dos exploradores que pelo campo enviara a descobrimento. “Cavaleiros cristãos, cavaleiros cristãos, (gritam estes, recolhendo-se turvadamente ao meio dos seus) cavaleiros cristãos! que se não saís apercebidos a rechaçá-los, não tardarão que nos cometam, tanta é a soberba de suas vozes e feros, e a arrogância do seu campear, certo maiores do que se havia de esperar de tão pequena cópia de gente! Saí logo, saí os que já sois prestes, que vos fiamos havereis deles bom barato.” Com tanta fúria foram estas palavras ouvidas, que toda a companhia com grito de Allah, aberta a porta, se arremessou em torrente ao campo e se foram de tropel contra os mal-estreados quebrantadores de seu sono. Giraldo, que por este ensejo anelava escondido não longe com a sua turba, como sentiu assaz desviado o tumulto, investe com a porta ainda patente, qual, ou de confiados ou, o que é mais para crer, de atónitos, a conservavam os porteiros e guardas dela; estes, cegos do escuro e confusos com a revolta, só reconheceram pelas obras a quem vinha entrando, e quando já não havia resguardarem-se; porque, recebendo em câmbio das perguntas com que festejavam o vitorioso regresso dos seus, resposta de botes, talhes e revezes, logo ali se desampararam das vidas. Entrados os cristãos e deixado aquele passo a bom recado à conta do golpe de inimigos que andava fora, se espalharam pelas ruas com grandes vozes de “Vitória, Portugal e S. Thiago!” e acutilando quantos mouros armados lhes ocorriam. Então o conhecimento claro do mal presente restituiu aos moradores a resolução que os anúncios de um perigo não sabido lhes tivera embargada. Também isto o previra Giraldo, e para acautelar que nessa hora se não viesse a perder o valor afogado da multidão, e desejoso de acabar este feito o menos enxovalhado, que ser pudesse, de sangue até de infiéis, é que fizera trazer aquelas estacas que a sua gente agora ia atravessando pelas argolas de todas as portas, a fim de salvar pela prisão as vidas dos que ainda se não tivessem lançado perdê-las. Continuava, não obstante, por toda a parte, antes crescia o reboliço. Ao estrepito das armas, gritos e gemidos dos moribundos e precipitadas carreiras de perseguidos e perseguidores, se acendiam pelas casas os choros e clamores feminis; pelos minaretes o rebate; pelos eirados a raiva que de tudo fazia armas, e as chovia ruidosamente sobre os adversários de envolta com as maldições e impropérios. Os melhores dos mouros que fora andavam a braços com os cavaleiros da trilha, pouco tardou que pelo ressoar da cidade caíssem na conta do que podia aquilo ser, e entendessem quanto importava acudir, se ainda fosse tempo, ao centro e soma de todos seus interesses; pelo que pelejando e refugindo, se vieram outra vez caminho da porta. Chegados a ela, e quando esperavam que para recebê-los se abriria, a viram escancarar-se para vomitar um bando de espadas que tempestuosamente os tomaram pelos rostos, enquanto os de cavalo os alanceavam pelas espaldas. Aqui foi o desmaiarem totalmente os corações: arremessam as armas os que sobrevivem, e por cima dos corpos dos feridos e mortos, por entre os cavalos e os golpes, o alarido e as trevas, se dispersam voando e desaparecem, mais acossados do pavor que do perigo, por que os cristãos desprezando segui-los por acudir ao ruido dos muros adentro, se deram toda a pressa de entrar; e reposta em bom seguro a porta, se derramaram pelas ruas a ajudar os companheiros assim com as obras como com as novas do desbarate já feito.
Como esclareceu a manhã, sentindo Giraldo quietada com o terror toda a cidade por jazerem mortos, ou andarem fugidos os mais valentes de seus filhos, e não poderem nem ousarem os outros sair-se das casas, ordenou que na mortandade se pusesse ponto, contentando-se os vencedores por direito de guerra e em paga da perdida noite, com o saque geral da povoação tão rica e tão a súbitas apanhada. Assim se viram de repente os foragidos de Montemuro senhores de uma capital, servidos de escravos e escravas, abastados de tudo, até de fama para entre cristãos e infiéis. Duas sós cousas lhes faleciam, a honra de outrora, e a faculdade de rever a pátria. Ambas essas maravilhas se cifravam na graça de El-Rei; nem sequer ousavam desejá-las. Porém Giraldo, sua antiga Providência, inda os não desamparou. Assim como houve a cidade às mãos despachou embaixador a D. Afonso, encarregado de lhe pôr aos pés as chaves dela, e a espada que a ganhara, com uma carta mui bem concertada de termos de lealdade, na qual lhe pedia fosse servido mandar logo tomar conta daquela pequena menagem, qual para ele e para a fé a haviam gostosamente granjeado os sem ventura não há muito seus filhos, e ainda agora e sempre seus soldados e servidores; que eles aí lh'a ficavam guardando, prestes a entregar-se-lhe com ela, e receber sem queixume da mão de seu Senhor e Rei o perdão ou castigo com que alfim lhe prouvesse aliviá-los de seu longo desterro.
Cheio estava ainda o príncipe, quando a embaixada lhe chegou, do contentamento que recentes vitórias suas lhe influíram: Sesimbra tomada, El-Rei de Badajoz com soberba cópia de gente destruído, a formidável Palmela, ao simples som das nossas trombetas, como Jericho humilhada e entregue, outras muitas entradas felicíssimas por terras de mouros transtaganos! Acresciam-lhe ao contentamento as esperanças dos novos louros que já traçava colher de Moura, de Serpa, de Alconchel, de Coruche e de Elvas, que esse mesmo ano de 1166 lhe veio a entregar. Acolheu com boa sombra o mensageiro; e dando a Deus muitas graças por até em criminosos florir a heroicidade portuguesa, o tornou logo a despedir com as chaves da cidade, a espada que a ganhara, e letras cerradas de resposta para o Capitão D. Giraldo, pelas quais o nomeava seu vassalo e Alcaide perpétuo da sua cidade de Évora, com o perdão, honras, e mercê da fazenda ganha, a todos e cada um de seus valorosos sequazes.
Assim veio a poder de cristãos, para nunca mais sair dele, esta formosa cidade, já insigne de tempos antiquíssimos; — enquanto Lusitana, resistidora das legiões do Tibre, e amada de Sertório, de cuja mão recebeu parte das joias que ainda hoje alardeia, o seu colar de muralhas, e o seu aqueduto da água da prata; — Romana, tão mimosa de Júlio Cesar, tão enriquecida por ele de foros e privilégios, que Liberalidade Júlia foi o seu nome; e tão bem olhada do céu, que nascido o sol da fé, madrugou com as primeiras a recebê-lo, e a quási todas se antecipou nos triunfos do martírio. Rebatizada, depois de quatro séculos de árabe, reassume o báculo pontifical, que já por outros três séculos empunhara quando Goda, e com ele alçado por cima dos outros da província, para sempre se fica pastorando um vastíssimo rebanho. — Abastada de nobreza pela multidão de suas antiguidades, pelo venerando aspeto de seus edifícios, pelo número das suas casas religiosas e opulência da sua catedral, pela fidalguia de suas famílias, pelos varões com que tem honrado as letras e a milícia, pelas ciências de que já foi depósito, pelos monarcas a cuja corte já deu assento, Évora dentre tantas glórias só quis e conserva por brasão de suas armas um cavaleiro com a espada erguida, e duas cabeças cortadas.»