sábado, 7 de abril de 2012

O Homo Sacer atual


A figura do direito arcaico romano, o homo sacer (homem sagrado, no sentido negativo), que teve alguma aplicabilidade em condições históricas concretas, no mundo atual e em virtude da contínua perda de limites espácio-temporais do estado de exceção, tornou-nos a todos potenciais homines sacri (homens sagrados).
Ao longo da história do último século a figura do homo sacer reapareceu sob diversas formas: o refugiado, o indivíduo cuja vida é considerada indigna de ser vivida, os indivíduos e povos submetidos à eugenia e ao extermínio, o indivíduo no estado ultracomatoso e o neomorto e, por fim o indivíduo encarcerado num campo.
Ao refugiado, precisamente por estar destituído de cidadania, propriedade, profissão, mais não lhe deveriam restar senão os direitos associados à sua estrita condição de ser humano, o objeto e o sujeito essencial da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão mas, no sistema do Estado-nação, estes direitos, sagrados e inalienáveis, estão desprovidos de toda a tutela e realidade, na medida em que não é possível configurá-los como cidadãos de direito de um Estado. A partir da 1ª Guerra Mundial, com o aparecimento de novas nações, a relação nascimento-nação deixou de poder desempenhar a função de legitimação de cidadania, quebrando-se a continuidade entre natividade e nacionalidade que se acrescenta à distinção, ou mesmo oposição, entre homem e cidadão.
Ao longo do século passado até hoje o número de refugiados não tem parado de crescer, constituindo uma parte não negligenciável da humanidade, devendo assim ser considerado um conceito-limite ao colocar em causa as categorias fundamentais do Estado-nação, evidenciando a realidade do campo no novo modelo biopolítico.
O especialista em direito penal Karl Binding (1841-1920) e o professor de medicina Afred Hoche (1865-1943) publicaram, em 1920, um texto intitulado “A autorização para suprimir a vida” no qual aplicavam o conceito de “vida indigna de ser vivida” ou “vida sem valor” a dois grupos constituídos: um por indivíduos em fase terminal, considerados “irremediavelmente perdidos” na sequência de doença ou ferimentos e que, conscientemente, desejavam pôr fim ao seu sofrimento, manifestando de algum modo esse desejo; o outro, constituído por “idiotas incuráveis”, quer os que nasceram assim, quer os que se tornaram na última fase da sua vida (exemplo os doentes da paralisia progressiva). Esta condição é mais problemática pois, segundo Binding, não têm vontade de viver nem de morrer e, se por um lado não manifestam qualquer aceitação da morte, por outro, esta não choca contra nenhuma vontade de viver que seja necessário superar. Vivem uma vida sem objetivo, mas não a sentem como intolerável, uma vida nua do homo sacer, uma vida que pode ser aniquilada sem se cometer homicídio.
A forma mais completa da fusão entre a medicina e a política, que é uma das características essenciais da biopolítica moderna, ficou marcada pelo Reich nacional-socialista ao levar por diante um programa de eliminação sistemática da “vida indigna de ser vivida”.
São estes princípios da nova biopolítica moderna ditados pela eugenia, entendida como a ciência da herança genética, cujo objetivo é cuidar do “corpo biológico da nação” e do seu desenvolvimento, que adquire todo o sentido no extermínio dos judeus, no qual razões eugénicas e ideológicas, preocupações sanitárias e projetos políticos se tornam indiscerníveis.
A lei de proteção da saúde hereditária do povo alemão alargava a eugenia ao matrimónio estabelecendo que “nenhum matrimónio pode ser contraído: 1) quando um dos noivos sofrer de uma doença contagiosa passível de provocar um dano grave à saúde do cônjuge ou dos seus descendentes; 2) quando um dos noivos está interdito ou provisoriamente sob tutela; 3) quando um dos noivos, sem estar interdito, sofre de uma doença mental que torna o matrimónio indesejável para a comunidade nacional; 4) quando um dos noivos sofre de uma das doenças hereditárias previstas pela lei de 14 de Julho de 1933”.
«No horizonte biopolítico que caracteriza a modernidade, o médico e o cientista movem-se na terra de ninguém em que, outrora, só o soberano podia penetrar».
A guerra aérea tinha entrado numa fase de voo a grande altitude e, nestas condições, se a cabine pressurizada sofria danos ou o piloto tinha de se lançar de paraquedas, o risco de morte era muito elevado. Há muito que se realizavam investigações sobre o salvamento a grandes altitudes e tendo em conta que as experiências não eram eficazes com animais, em 1941, o doutor Roscher escreveu a Himmler (1900-1945) para lhe pedir, dada a importância das suas experiências e o risco mortal que elas comportavam para as VP (Versucheperssonem, cobaias humanas), se seria possível dispor de “dois ou três delinquentes profissionais” para poder prosseguir com os seus trabalhos. Da correspondência entre Roscher e Himmler (integralmente conservada), resultou a instalação em Dachau de uma câmara de compressão para prosseguirem as experiências. Um lugar em que as VP eram fáceis de arranjar. O protocolo da experiência levada a cabo com uma judia de 37 anos, de boa saúde, a uma pressão correspondente a 12.000 metros de altitude, descreve que: “Após quatro minutos a VP começou a suar e a abanar a cabeça. Após cinco minutos, começou a ter cãibras, entre os seis e os dez a respiração acelerou-se e a VP perdeu a consciência; entre os dez e os trinta minutos, a sua respiração diminuiu para as três respirações por minuto, para depois parar totalmente. Durante esse tempo, a cor da VP tornou-se fortemente azulada e apareceu baba ao canto dos lábios”. Segue-se o relatório da dissecação do cadáver para verificar eventuais lesões orgânicas.
Nos Estados Unidos foram igualmente realizadas experiências com detidos e condenados à morte, mas aqui, o sistema jurídico exigiu a concordância por parte do indivíduo que devia ser submetido à experiência, tendo que assinar uma declaração em que assumia todos os riscos da experiência, isentava de responsabilidades todos os intervenientes e renunciava reclamar qualquer dano ou doença, mesmo mortal, que pudesse resultar.
A hipocrisia reside no facto de se falar de vontade livre e de concordância em relação a um condenado à morte ou a pesadas penas de prisão.
Num breve estudo publicado em 1959, dois neuro fisiologistas franceses, P. Mollaret (1898-1987) e M. Goulon (1919-2008), acrescentavam aos três graus tradicionais de coma – o coma comum (perda das funções de relação e conservação das funções de vida vegetativa), o coma vígil (a perda das funções de relação não é completa), o coma carus (funções de vida vegetativa gravemente perturbada) – um grau extremo a que chamavam coma ultrapassado (coma depassé). Uma formulação claramente paradoxal, porque definia um estádio de vida para além da paragem de todas as funções vitais, um estado comatoso que resultava integralmente das novas tecnologias de reanimação, deixando o indivíduo de “viver” logo que os “tratamentos” de reanimação fossem interrompidos. «O estado do indivíduo em além-coma era a condição ideal para a recolha dos órgãos, mas isso implicava que fosse definido com certeza o momento da morte, para que o cirurgião que efetuava o transplante não pudesse ser acusado de homicídio». Transformavam-se assim, de científicos em políticos, os conceitos de vida e de morte.
W. Gaylin (1838-1916), num artigo em que evocou o espectro dos corpos – a que chama “neomorts” – que teriam o estatuto legal de cadáveres, mas que, na perspetiva de eventuais transplantes, podiam manter algumas características de vida: “seriam quentes, palpitantes e urinantes” (…). A sala de reanimação passa a um estado de exceção onde aparece no estado puro uma vida nua pela primeira vez totalmente controlada pelo homem e pela sua tecnologia, onde oscilam entre a vida e a morte o neomorto, o ultracomatoso e o falso vivo.
Os historiadores discutem se o aparecimento do primeiro campo se deu nos campos de concentraciones criados pelos espanhóis em Cuba, em 1896, ou nos concentration camps onde os ingleses no princípio do século XX amontoaram os bóers; o que importa salientar é que, em ambos os casos se tratou de alargar a uma população civil inteira um estado de exceção ligado a uma guerra colonial. «Os campos nascem, assim, não do direito corrente, (…) mas do estado de exceção e da lei marcial», «o campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a tornar-se regra» sustenta o filósofo Agamben (1942), dando início a um novo modelo jurídico-político em que a norma se torna indistinta da exceção.
Para Agamben, «se a essência do campo consiste na materialização do estado de exceção e na consequente criação de um espaço em que a vida nua e a norma acedem a um limiar de indistinção», será um campo tanto o estádio de Bari onde a polícia italiana, em 1991, amontoou provisoriamente os imigrantes clandestinos albaneses antes de os reenviar para o seu pais, como o velódromo de inverno onde as autoridades de Vichy reuniram os judeus antes de os entregar aos alemães; o Konzentrationlager für Auslander em Cottbus-Sielow, onde o governo de Weimer juntou os judeus do Leste, assim como as zonas portuárias dos aeroportos, onde são retidos os estrangeiros que pedem reconhecimento do estatuto de refugiado, ou certas periferias das nossas cidades.
E conclui Agamben: «Depois dos campos, não há regresso possível à política clássica; neles, a cidade e a casa tornaram-se indiferenciáveis e a possibilidade de distinguir entre o nosso corpo biológico e o nosso corpo político, entre o que é comunicável e dizível, foi-nos retirado para sempre».
São de realçar os perigos da fusão entre a medicina e a política que podem resvalar para um campo onde as linhas divisórias entre a saúde e o bem-estar se podem confundir com os projetos políticos, entre o nosso corpo biológico e o nosso corpo político. As questões acerca do genoma humano, os limites de manipulação dos genes e do desenvolvimento das forças da vida, das biotecnologias, a clonagem e os problemas éticos que levanta, desenham um novo mapa dos bio poderes e geram discussões sobre as próprias formas de vida.
A esperança na descoberta de cura para inúmeras doenças de origem genética e na possibilidade de melhoria na qualidade de vida humana, colocam questões acerca dos limites de aplicação da engenharia genética, do uso que se dará as informações genéticas e da insegurança quanto ao uso deste conhecimento.
“O nosso quotidiano civilizado está cheio desses seres que mantendo uma similar aparência física, se afastaram de tal maneira da humanidade que perderam o laço comum. Pelo que estão reunidas as condições objetivas e morais para a chacina dos homens-lixo. E essa é já uma prática quotidiana. Imposta pelas autoridades, desculpada pela moral pública, exigida pela economia” (Moura 2000 p.14).
Os sem-abrigo vivem o estado de exceção, a “vida nua”, fazem parte dos excluídos, os abandonados pelo “bando” a que pertencemos (a sociedade) e, muitos deles não só a sociedade os rejeita como até a própria família.
Sem projeto, estão frágeis, repetem um padrão de falhanço, estão encurralados no presente e não têm nenhuma consciência do tempo. São incapazes de definir quais são as suas preocupações assim como os seus desejos. Estão como parados, numa vida em que a satisfação das necessidades básicas como encontrar comida e um lugar para dormir está sempre presente. Vida preenchida pelo álcool, o tabaco e outros expedientes.
Segundo dados da FEANTSA (2000), o número dos sem-abrigo tem tido um aumento constante a nível europeu, estimando-se em dezoito milhões de europeus (um pessoa em 20) nos 15 países da EU, sem de acesso a uma habitação condigna. Três milhões estão efetivamente sem teto e 15 milhões vivem em casas superlotadas ou sem condições. Este fenómeno difere de país para país, se bem que o registo real da situação e a comparação entre países seja difícil devido à falta de dados estatísticos e de a definição consensual do conceito de “sem-abrigo”.

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