A figura do direito arcaico romano, o homo sacer (homem sagrado, no sentido
negativo), que teve alguma aplicabilidade em condições históricas concretas, no
mundo atual e em virtude da contínua perda de limites espácio-temporais do
estado de exceção, tornou-nos a todos potenciais homines sacri (homens sagrados).
Ao longo da história do último século a figura do homo sacer reapareceu sob diversas
formas: o refugiado, o indivíduo cuja vida é considerada indigna de ser vivida,
os indivíduos e povos submetidos à eugenia e ao extermínio, o indivíduo no
estado ultracomatoso e o neomorto e, por fim o indivíduo encarcerado num campo.
Ao refugiado, precisamente por estar destituído de
cidadania, propriedade, profissão, mais não lhe deveriam restar senão os
direitos associados à sua estrita condição de ser humano, o objeto e o sujeito
essencial da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão mas, no
sistema do Estado-nação, estes direitos, sagrados e inalienáveis, estão
desprovidos de toda a tutela e realidade, na medida em que não é possível
configurá-los como cidadãos de direito de um Estado. A partir da 1ª Guerra
Mundial, com o aparecimento de novas nações, a relação nascimento-nação deixou
de poder desempenhar a função de legitimação de cidadania, quebrando-se a
continuidade entre natividade e nacionalidade que se acrescenta à distinção, ou
mesmo oposição, entre homem e cidadão.
Ao longo do século passado até hoje o número de
refugiados não tem parado de crescer, constituindo uma parte não negligenciável
da humanidade, devendo assim ser considerado um conceito-limite ao colocar em
causa as categorias fundamentais do Estado-nação, evidenciando a realidade do
campo no novo modelo biopolítico.
O especialista em direito penal Karl Binding (1841-1920) e o
professor de medicina Afred Hoche (1865-1943) publicaram, em 1920, um texto intitulado “A autorização para suprimir a vida” no
qual aplicavam o conceito de “vida indigna de ser vivida” ou “vida sem valor” a
dois grupos constituídos: um por indivíduos em fase terminal, considerados
“irremediavelmente perdidos” na sequência de doença ou ferimentos e que,
conscientemente, desejavam pôr fim ao seu sofrimento, manifestando de algum
modo esse desejo; o outro, constituído por “idiotas incuráveis”, quer os que
nasceram assim, quer os que se tornaram na última fase da sua vida (exemplo os
doentes da paralisia progressiva). Esta condição é mais problemática pois,
segundo Binding, não têm vontade de viver nem de morrer e, se por um lado não
manifestam qualquer aceitação da morte, por outro, esta não choca contra
nenhuma vontade de viver que seja necessário superar. Vivem uma vida sem
objetivo, mas não a sentem como intolerável, uma vida nua do homo sacer, uma vida que pode ser aniquilada
sem se cometer homicídio.
A forma mais completa da fusão entre a medicina e a
política, que é uma das características essenciais da biopolítica moderna,
ficou marcada pelo Reich nacional-socialista ao levar por diante um programa de
eliminação sistemática da “vida indigna de ser vivida”.
São estes princípios da nova biopolítica moderna
ditados pela eugenia, entendida como a ciência da herança genética, cujo
objetivo é cuidar do “corpo biológico da nação” e do seu desenvolvimento, que
adquire todo o sentido no extermínio dos judeus, no qual razões eugénicas e
ideológicas, preocupações sanitárias e projetos políticos se tornam
indiscerníveis.
A lei de proteção da saúde hereditária do povo alemão
alargava a eugenia ao matrimónio estabelecendo que “nenhum matrimónio pode ser
contraído: 1) quando um dos noivos sofrer de uma doença contagiosa passível de
provocar um dano grave à saúde do cônjuge ou dos seus descendentes; 2) quando
um dos noivos está interdito ou provisoriamente sob tutela; 3) quando um dos
noivos, sem estar interdito, sofre de uma doença mental que torna o matrimónio
indesejável para a comunidade nacional; 4) quando um dos noivos sofre de uma
das doenças hereditárias previstas pela lei de 14 de Julho de 1933”.
«No horizonte biopolítico que caracteriza a
modernidade, o médico e o cientista movem-se na terra de ninguém em que,
outrora, só o soberano podia penetrar».
A guerra aérea tinha entrado numa fase de voo a
grande altitude e, nestas condições, se a cabine pressurizada sofria danos ou o
piloto tinha de se lançar de paraquedas, o risco de morte era muito elevado. Há
muito que se realizavam investigações sobre o salvamento a grandes altitudes e
tendo em conta que as experiências não eram eficazes com animais, em 1941, o
doutor Roscher escreveu a Himmler (1900-1945) para lhe pedir, dada a importância das suas
experiências e o risco mortal que elas comportavam para as VP (Versucheperssonem, cobaias humanas), se
seria possível dispor de “dois ou três delinquentes profissionais” para poder
prosseguir com os seus trabalhos. Da correspondência entre Roscher e Himmler (integralmente
conservada), resultou a instalação em Dachau de uma câmara de compressão para
prosseguirem as experiências. Um lugar em que as VP eram fáceis de arranjar. O
protocolo da experiência levada a cabo com uma judia de 37 anos, de boa saúde,
a uma pressão correspondente a 12.000 metros de altitude, descreve que: “Após
quatro minutos a VP começou a suar e a abanar a cabeça. Após cinco minutos,
começou a ter cãibras, entre os seis e os dez a respiração acelerou-se e a VP
perdeu a consciência; entre os dez e os trinta minutos, a sua respiração
diminuiu para as três respirações por minuto, para depois parar totalmente.
Durante esse tempo, a cor da VP tornou-se fortemente azulada e apareceu baba ao
canto dos lábios”. Segue-se o relatório da dissecação do cadáver para verificar
eventuais lesões orgânicas.
Nos Estados Unidos foram igualmente realizadas
experiências com detidos e condenados à morte, mas aqui, o sistema jurídico
exigiu a concordância por parte do indivíduo que devia ser submetido à
experiência, tendo que assinar uma declaração em que assumia todos os riscos da
experiência, isentava de responsabilidades todos os intervenientes e renunciava
reclamar qualquer dano ou doença, mesmo mortal, que pudesse resultar.
A hipocrisia reside no facto de se falar de vontade
livre e de concordância em relação a um condenado à morte ou a pesadas penas de
prisão.
Num breve estudo publicado em 1959, dois neuro
fisiologistas franceses, P. Mollaret (1898-1987) e M. Goulon (1919-2008), acrescentavam aos três graus
tradicionais de coma – o coma comum (perda das funções de relação e conservação
das funções de vida vegetativa), o coma vígil (a perda das funções de relação
não é completa), o coma carus
(funções de vida vegetativa gravemente perturbada) – um grau extremo a que
chamavam coma ultrapassado (coma depassé).
Uma formulação claramente paradoxal, porque definia um estádio de vida para
além da paragem de todas as funções vitais, um estado comatoso que resultava
integralmente das novas tecnologias de reanimação, deixando o indivíduo de
“viver” logo que os “tratamentos” de reanimação fossem interrompidos. «O estado
do indivíduo em além-coma era a condição ideal para a recolha dos órgãos, mas
isso implicava que fosse definido com certeza o momento da morte, para que o
cirurgião que efetuava o transplante não pudesse ser acusado de homicídio».
Transformavam-se assim, de científicos em políticos, os conceitos de vida e de
morte.
W. Gaylin (1838-1916), num artigo em que evocou o espectro dos
corpos – a que chama “neomorts” – que teriam o estatuto legal de cadáveres, mas
que, na perspetiva de eventuais transplantes, podiam manter algumas
características de vida: “seriam quentes, palpitantes e urinantes” (…). A sala
de reanimação passa a um estado de exceção onde aparece no estado puro uma vida
nua pela primeira vez totalmente controlada pelo homem e pela sua tecnologia,
onde oscilam entre a vida e a morte o neomorto, o ultracomatoso e o falso vivo.
Os historiadores discutem se o aparecimento do
primeiro campo se deu nos campos de
concentraciones criados pelos espanhóis em Cuba, em 1896, ou nos concentration camps onde os ingleses no
princípio do século XX amontoaram os bóers; o que importa salientar é que, em
ambos os casos se tratou de alargar a uma população civil inteira um estado de
exceção ligado a uma guerra colonial. «Os campos nascem, assim, não do direito
corrente, (…) mas do estado de exceção e da lei marcial», «o campo é o espaço
que se abre quando o estado de exceção começa a tornar-se regra» sustenta o
filósofo Agamben (1942), dando início a um novo modelo jurídico-político em que a
norma se torna indistinta da exceção.
Para Agamben, «se a essência do campo consiste na
materialização do estado de exceção e na consequente criação de um espaço em
que a vida nua e a norma acedem a um limiar de indistinção», será um campo
tanto o estádio de Bari onde a polícia italiana, em 1991, amontoou
provisoriamente os imigrantes clandestinos albaneses antes de os reenviar para
o seu pais, como o velódromo de inverno onde as autoridades de Vichy reuniram
os judeus antes de os entregar aos alemães; o Konzentrationlager für Auslander em Cottbus-Sielow, onde o governo
de Weimer juntou os judeus do Leste, assim como as zonas portuárias dos
aeroportos, onde são retidos os estrangeiros que pedem reconhecimento do
estatuto de refugiado, ou certas periferias das nossas cidades.
E conclui Agamben: «Depois dos campos, não há
regresso possível à política clássica; neles, a cidade e a casa tornaram-se
indiferenciáveis e a possibilidade de distinguir entre o nosso corpo biológico
e o nosso corpo político, entre o que é comunicável e dizível, foi-nos retirado
para sempre».
São de realçar os perigos da fusão entre a medicina e
a política que podem resvalar para um campo onde as linhas divisórias entre a
saúde e o bem-estar se podem confundir com os projetos políticos, entre o nosso
corpo biológico e o nosso corpo político. As questões acerca do genoma humano,
os limites de manipulação dos genes e do desenvolvimento das forças da vida,
das biotecnologias, a clonagem e os problemas éticos que levanta, desenham um
novo mapa dos bio poderes e geram discussões sobre as próprias formas de vida.
A esperança na descoberta de cura para inúmeras
doenças de origem genética e na possibilidade de melhoria na qualidade de vida
humana, colocam questões acerca dos limites de aplicação da engenharia
genética, do uso que se dará as informações genéticas e da insegurança quanto
ao uso deste conhecimento.
“O nosso quotidiano civilizado está cheio desses
seres que mantendo uma similar aparência física, se afastaram de tal maneira da
humanidade que perderam o laço comum. Pelo que estão reunidas as condições
objetivas e morais para a chacina dos homens-lixo. E essa é já uma prática
quotidiana. Imposta pelas autoridades, desculpada pela moral pública, exigida
pela economia” (Moura 2000 p.14).
Os sem-abrigo
vivem o estado de exceção, a “vida nua”, fazem parte dos excluídos, os
abandonados pelo “bando” a que pertencemos (a sociedade) e, muitos deles não só
a sociedade os rejeita como até a própria família.
Sem projeto,
estão frágeis, repetem um padrão de falhanço, estão encurralados no presente e
não têm nenhuma consciência do tempo. São incapazes de definir quais são as
suas preocupações assim como os seus desejos. Estão como parados, numa vida em
que a satisfação das necessidades básicas como encontrar comida e um lugar para
dormir está sempre presente. Vida preenchida pelo álcool, o tabaco e outros
expedientes.
Segundo
dados da FEANTSA (2000), o número dos sem-abrigo tem tido um aumento constante
a nível europeu, estimando-se em dezoito milhões de europeus (um pessoa em 20)
nos 15 países da EU, sem de acesso a uma habitação condigna. Três milhões estão
efetivamente sem teto e 15 milhões vivem em casas superlotadas ou sem
condições. Este fenómeno difere de país para país, se bem que o registo real da
situação e a comparação entre países seja difícil devido à falta de dados
estatísticos e de a definição consensual do conceito de “sem-abrigo”.
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