O dia 10 de junho, dia
que assinala a morte de Luís Vaz de Camões, é o dia de Portugal, de Camões e das
Comunidades Portuguesas. A partir de 1933, com a instauração do Estado Novo, esta data foi
particularmente exaltada. O dia 10 de
junho era o dia da elevação nacionalista, de comemoração histórica e
propagandística, numa homenagem às Forças Armadas e engrandecimento da guerra e
poder colonial, tendo sido celebrado como o Dia
da Raça - a raça portuguesa. Foi a partir de 1978 que as comemorações do 10
de junho passaram a ter a designação atual.
Como modesta
contribuição para as celebrações deste dia, aqui deixo a minha apreciação
crítica a um filme, de há muitas décadas atrás, sobre a vida do grande poeta:
Partindo do pouco que
se sabe acerca da sua existência, o filme «Camões» pretende recriar a vida
errante de Luís de Camões, o poeta épico, um dos maiores, senão o maior vulto
da literatura portuguesa, que desde os seus tempos de irreverente estudante em
Coimbra, fruto do seu carácter de homem boémio, desenvolto e da sua veia
poética, se terá envolvido em aventuras amorosas, suscitando rivalidades e
invejas, sendo alvo de intrigas e ciladas, continuadas mais tarde entre os
frequentadores da corte de D. João III, em Lisboa.
O momento da
realização deste filme (1946) é por si uma condicionante à sua apreciação. De
facto, não nos podemos abstrair que a liberdade de expressão era fortemente
condicionada naquela época. A própria ficha técnica nos diz que os diálogos
foram revistos e o filme foi considerado de “utilidade pública pelo governo
português e patrocinado pelos serviços oficiais”, não escapando, como acontecia
a tudo o que era do domínio público, ao lápis da censura.
Apesar disso, a
criatividade artística encontra sempre meios para contornar as vicissitudes e,
sub-repticiamente, introduzir críticas ao regime que a censura, por uma ou
outra razão, deixa escapar. É o caso, na minha opinião, da cena no colégio em
Coimbra onde os alunos recitam, depois do mestre: “a lei determina os atos que são próprios da virtude e da fortaleza bem
como os da temperança e da mansidão, intervém em toda a virtude e toda a
malícia, preceituando aquela e proibindo esta”, enquanto uma música ao
longe insinua a perturbação de tão profícua aula a tão profícuos alunos, que
logo a atribuem ao «trinca-fortes» e à sua malta de brigões. «Trinca-fortes»
que não é nem mais nem menos que Luís de Camões.
Se esta cena insinua
uma leitura crítica ao regime, as outras que se seguem na corte do rei, em
Lisboa, também o fazem, na medida em que muitas das personagens que em Coimbra
procuravam suprir as suas incapacidades através da subserviência e da intriga,
são agora os servis que se acoitam à sombra do poder e procuram sobreviver à
custa da mentira, da perfídia. O poeta é uma das suas vítimas. Vendo-se
envolvido em ardis e traições, acaba por ser desterrado para o Ribatejo por 2
anos. Mais tarde, para escapar à prisão, foge para Ceuta ali perdendo um olho
ao combater na defesa da fortaleza. Regressado a Lisboa, uma rixa com um moço
da cavalariça real veio a ser o pretexto para a condenação a um ano de prisão,
findo o qual obtém a liberdade com a promessa de ir servir na Índia. E assim, o
já conceituado poeta, pelo facto de não se inibir de criticar nas suas obras as
incongruências da nobreza na corte e a própria realeza, vê-se relegado para a
Índia longínqua como um mero soldado raso.
Se podemos encontrar
no filme «Camões» uma crítica
subjetiva a um regime que premeia os alinhados e subservientes, não me restam
quaisquer dúvidas que todo o enredo foi concebido por forma a criticar o
anterior regime monárquico, ainda com muitas simpatias entre os portugueses da
época; a vida faustosa de uma realeza mais preocupada com a vida palaciana do
que com a administração do reino, que vivia rodeada de uma plêiade de nobres e
aventureiros entretidos em jogos de intrigas, traições e embustes para manterem
os seus favores e privilégios, e que não hesita em condenar ao ostracismo
cidadãos de grande mérito, de que o tão ilustre homem das letras que melhor que
ninguém soube cantar bem alto a nobre Nação Portuguesa – que foi Luís Vaz de
Camões – serve de perfeito exemplo.
O filme «Camões» foi
concebido para exaltar as virtudes cristãs, o fervor patriótico e o próprio
regime, apontando ao outro defeitos de que ele próprio padecia. Algo que é
comum em todos os governos. Que é comum na raça humana. Vermos nos outros os
nossos próprios defeitos.
Sem comentários:
Enviar um comentário