sábado, 5 de maio de 2012

As revoltas nos subúrbios das grandes cidades e os “tute bianche”


É na periferia das grandes cidades, onde se situam normalmente as chamadas “zonas problemáticas”, para onde são «enxotados» os mais pobres, os excluídos, os marginalizados, causa e efeito da urbanização, da pressão demográfica e da diferenciação e desintegração social que acompanham o processo.
A inadaptabilidade às condições de trabalho devido a problemas de formação, a desorganização familiar, o desemprego, a falta de orientação educacional e ocupacional, os problemas étnicos e a rivalidade entre grupos marginais, são terreno fértil para a proliferação da droga, de atitudes comportamentais desviantes, para a frustração e a revolta.
Em Portugal, as cenas de violência de que há relatos referem-se a confrontos com as autoridades na sequência de realojamentos, protagonizados principalmente por indivíduos que à partida não tinham direito a serem realojados, confrontos entre grupos marginais rivais ou rixas entre etnias, como foi o caso do tiroteio ocorrido entre a comunidade cigana e africana, na Quinta da Fonte, freguesia da Apelação, Loures, em Julho de 2008. No entanto, sente-se a tensão, a pressão social, o mal-estar geral. A crise em que o país está mergulhado e o constante aumento do desemprego, poderão fazer com que o tradicional comportamento pacífico dos portugueses, este clima de paz podre, seja o fermento para o desencadear de cenas de violência desenfreada a que, Ans Magnus Enzensberger no seu ensaio de 1993 sobre a guerra civil, chamou «guerra civil molecular», algo semelhante aos acontecimentos que se verificaram nos subúrbios parisienses em Outubro de 2005.
Há uma relação muito próxima entre o desemprego, a inatividade, o sentimento de inutilidade, o “sentir-se a mais”, a baixa autoestima, que conjugadas com os subúrbios sobrepovoados e desumanizados, levam a que as pessoas se sintam excluídas, colocadas à margem, como que encerradas em “campos”, no sentido que lhes dá Giorgio Agamben, como uma forma extrema de exclusão social. A conjugação de todos estes fatores pode funcionar como um barril de pólvora, gerador de hostilidades, de aversão à convivência humana, de vandalismo, violência gratuita, sabotagem dos espaços e equipamentos públicos, de convulsões sociais.
O movimento dos “tute bianche
Em meados da década de 1990, começou por afirmar-se, em Roma, o movimento dos tute bianche. Tratou-se de um grupo de ativistas radicais italiano que surgiu dos “centros sociais” que apareceram na década de 1970 para formar espaços sociais alternativos. Formavam grupos de jovens que ocupavam um edifício abandonado e aí criavam um lugar para si próprios, centros sociais quase sempre compostos por livrarias, cafés, estações de rádio, espaços de leitura, concertos, etc. – tudo sobre gestão coletiva.
É em meados da década de 1990 que, nesses “centros sociais”, nascem grupos que se dedicam à reflexão sobre as profundas transformações verificadas na sociedade, precisamente quando os partidos e organizações tradicionais da esquerda italiana conheciam um revés na sua afirmação, mas afirmando-se sempre à margem de qualquer filiação política ou ligação a grupos ou partidos políticos. Declaravam-se trabalhadores “invisíveis”, dado que não tinham contratos estáveis, nem segurança ou identidade estável, pretendendo com o branco da sua indumentária significar justamente esta invisibilidade que caracterizava o seu trabalho e se revelaria também como a força do movimento.
Quando as manifestações se começaram a multiplicar por várias cidades, os tute bianche passaram também à sua organização, associando-se aos imigrantes ilegais (também membros invisíveis da sociedade), aos refugiados políticos do Médio Oriente e a membros de diferentes movimentos de libertação.
Perante os confrontos violentos da polícia, os tute bianche respondiam de forma irónica e pacífica: em frente aos polícias com os seus equipamentos antimotim, punham as suas caneleiras e os seus capacetes brancos e transformavam em falsas máquinas de guerra as suas camionetas musicais, num verdadeiro espetáculo de ironia pós-moderna em torno da ativismo político.
Fizeram parte do núcleo principal dos organizadores das manifestações contra o G-8, organizadas em Génova, no verão de 2001, que mobilizaram mais de trezentos mil ativistas. Os tute bianche desfilaram pacificamente em direção ao teatro da cimeira, resistindo, dentro do possível, aos ataques da polícia com gases lacrimogéneos, matracas e balas. Porém, desta vez a sua mímica foi recebida com redobrada violência. Um dos manifestantes (Carlo Giuliani) foi morto pela polícia, gerando por toda a Itália e por toda a Europa uma imensa onda de indignação contra a violência policial.
A seguir às manifestações de Génova, os tute bianche decidiram desaparecer, considerando terminado o tempo de grupos como o que haviam formado encabeçarem os movimentos do povo. Desempenharam o seu papel ao participar na organização de grandes manifestações de protesto por ocasião das grandes cimeiras internacionais e globais, trabalhando no sentido de multiplicar os movimentos de contestação e de os tornar politicamente coerentes, esforçando-se por proteger os manifestantes dirigindo a sua agressividade, afastando-a da violência inútil e orientando-a para formas mais criativas e irónicas de expressão.
Se quisermos encontrar um fio condutor entre a atuação dos tute bianche e a atuação dos jovens vândalos dos subúrbios de Paris, o único traço de união é a contestação, a revolta, a não-aceitação do estado das coisas. A ação dos tutte bianche, caracterizada por manifestações de protesto pacíficas de afirmação das suas razões e rejeição da violência, recorrendo até à ironia em oposição à vigilância policial, foram a afirmação de luta por causas justas, eficaz na sua atuação pela grande adesão das populações, conferindo-lhes legitimidade por se tornar num grito de revolta de um povo, o que começava a incomodar o poder instituído.
Ao contrário, nos protestos de Outubro de 2005 dos jovens dos subúrbios de Paris, o que vimos foi uma fúria contra tudo o que estava intacto, atos de sabotagem contra mobiliário escolar, pneus cortados, telefones públicos destruídos, carros queimados, um ódio a tudo o que funciona, uma cólera contra a situação e uma incapacidade de atuarem como cidadãos. Um ódio contra tudo e contra todos, no fundo, um ódio contra eles próprios. A razão dos seus protestos transformou-se em desrazão pelos atos praticados, em desaprovação e ilegitimidade.
Os tute bianche estiveram longe de ser os «mortos vivos» de que fala Giorgio Agamben (1942) quando se refere aos campos de concentração nazis, da vida nua exposta à arbitrariedade dos excluídos da ordem económica e política, “os corpos dóceis” sem vontade própria e completamente submissos, nem tão pouco se alhearam dos problemas da sociedade, de «fuga ao mundo» vivendo as suas próprias vidas e alheios aos problemas sociais.
Bem pelo contrário, refletiram sobre as transformações profundas que se estavam a verificar na sociedade e lutaram, pacificamente e de forma original, enfrentando o poder não só em Itália, como alargaram a sua luta com outros povos e contra outros poderes no mundo.

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