É na periferia das grandes cidades, onde se situam
normalmente as chamadas “zonas problemáticas”, para onde são «enxotados» os
mais pobres, os excluídos, os marginalizados, causa e efeito da urbanização, da
pressão demográfica e da diferenciação e desintegração social que acompanham o
processo.
A inadaptabilidade às condições de trabalho devido a
problemas de formação, a desorganização familiar, o desemprego, a falta de
orientação educacional e ocupacional, os problemas étnicos e a rivalidade entre
grupos marginais, são terreno fértil para a proliferação da droga, de atitudes
comportamentais desviantes, para a frustração e a revolta.
Em Portugal, as cenas de violência de que há relatos referem-se a
confrontos com as autoridades na sequência de realojamentos, protagonizados
principalmente por indivíduos que à partida não tinham direito a serem
realojados, confrontos entre grupos marginais rivais ou rixas entre etnias,
como foi o caso do tiroteio ocorrido entre a comunidade cigana e africana, na
Quinta da Fonte, freguesia da Apelação, Loures, em Julho de 2008. No entanto,
sente-se a tensão, a pressão social, o mal-estar geral. A crise em que o país
está mergulhado e o constante aumento do desemprego, poderão fazer com que o
tradicional comportamento pacífico dos portugueses, este clima de paz podre, seja
o fermento para o desencadear de cenas de violência desenfreada a que, Ans Magnus
Enzensberger no seu ensaio de 1993 sobre a guerra civil, chamou «guerra civil
molecular», algo semelhante aos acontecimentos que se verificaram nos subúrbios
parisienses em Outubro de 2005.
Há uma relação
muito próxima entre o desemprego, a inatividade, o sentimento de inutilidade, o
“sentir-se a mais”, a baixa autoestima, que conjugadas com os subúrbios
sobrepovoados e desumanizados, levam a que as pessoas se sintam excluídas,
colocadas à margem, como que encerradas em “campos”, no sentido que lhes dá Giorgio Agamben, como uma forma extrema
de exclusão social. A conjugação de todos estes fatores pode funcionar como um
barril de pólvora, gerador de hostilidades, de aversão à convivência humana, de
vandalismo, violência gratuita, sabotagem dos espaços e equipamentos públicos,
de convulsões sociais.
O movimento dos “tute bianche”
Em meados da década de 1990, começou por afirmar-se, em Roma, o
movimento dos tute bianche. Tratou-se
de um grupo de ativistas radicais italiano que surgiu dos “centros sociais” que
apareceram na década de 1970 para formar espaços sociais alternativos. Formavam
grupos de jovens que ocupavam um edifício abandonado e aí criavam um lugar para
si próprios, centros sociais quase sempre compostos por livrarias, cafés,
estações de rádio, espaços de leitura, concertos, etc. – tudo sobre gestão
coletiva.
É em meados da década de 1990 que, nesses “centros sociais”, nascem
grupos que se dedicam à reflexão sobre as profundas transformações verificadas
na sociedade, precisamente quando os partidos e organizações tradicionais da
esquerda italiana conheciam um revés na sua afirmação, mas afirmando-se sempre
à margem de qualquer filiação política ou ligação a grupos ou partidos
políticos. Declaravam-se trabalhadores “invisíveis”, dado que não tinham contratos
estáveis, nem segurança ou identidade estável, pretendendo com o branco da sua
indumentária significar justamente esta invisibilidade que caracterizava o seu
trabalho e se revelaria também como a força do movimento.
Quando as manifestações se começaram a multiplicar por várias cidades,
os tute bianche passaram também à sua
organização, associando-se aos imigrantes ilegais (também membros invisíveis da
sociedade), aos refugiados políticos do Médio Oriente e a membros de diferentes
movimentos de libertação.
Perante os confrontos violentos da polícia, os tute bianche respondiam de forma irónica e pacífica: em frente aos
polícias com os seus equipamentos antimotim, punham as suas caneleiras e os
seus capacetes brancos e transformavam em falsas máquinas de guerra as suas
camionetas musicais, num verdadeiro espetáculo de ironia pós-moderna em torno
da ativismo político.
Fizeram parte do núcleo principal dos organizadores das manifestações
contra o G-8, organizadas em Génova, no verão de 2001, que mobilizaram mais de
trezentos mil ativistas. Os tute bianche
desfilaram pacificamente em direção ao teatro da cimeira, resistindo, dentro do
possível, aos ataques da polícia com gases lacrimogéneos, matracas e balas.
Porém, desta vez a sua mímica foi recebida com redobrada violência. Um dos
manifestantes (Carlo Giuliani) foi morto pela polícia, gerando por toda a
Itália e por toda a Europa uma imensa onda de indignação contra a violência
policial.
A seguir às manifestações de Génova, os tute bianche decidiram desaparecer, considerando terminado o tempo
de grupos como o que haviam formado encabeçarem os movimentos do povo.
Desempenharam o seu papel ao participar na organização de grandes manifestações
de protesto por ocasião das grandes cimeiras internacionais e globais,
trabalhando no sentido de multiplicar os movimentos de contestação e de os
tornar politicamente coerentes, esforçando-se por proteger os manifestantes
dirigindo a sua agressividade, afastando-a da violência inútil e orientando-a
para formas mais criativas e irónicas de expressão.
Se quisermos encontrar um fio condutor entre a atuação dos tute bianche e a atuação dos jovens
vândalos dos subúrbios de Paris, o único traço de união é a contestação, a
revolta, a não-aceitação do estado das coisas. A ação dos tutte bianche, caracterizada por manifestações de protesto pacíficas de afirmação das suas razões e rejeição da violência,
recorrendo até à ironia em oposição à vigilância policial, foram a afirmação de
luta por causas justas, eficaz na sua atuação pela grande adesão das populações,
conferindo-lhes legitimidade por se tornar num grito de revolta de um povo, o
que começava a incomodar o poder instituído.
Ao contrário, nos protestos de Outubro de 2005 dos jovens dos subúrbios
de Paris, o que vimos foi uma fúria contra tudo o que estava intacto, atos de
sabotagem contra mobiliário escolar, pneus cortados, telefones públicos
destruídos, carros queimados, um ódio a tudo o que funciona, uma cólera contra
a situação e uma incapacidade de atuarem como cidadãos. Um ódio contra tudo e
contra todos, no fundo, um ódio contra eles próprios. A razão dos seus
protestos transformou-se em desrazão pelos atos praticados, em desaprovação e
ilegitimidade.
Os tute bianche estiveram
longe de ser os «mortos vivos» de que fala Giorgio Agamben (1942) quando se refere aos
campos de concentração nazis, da vida nua exposta à arbitrariedade dos
excluídos da ordem económica e política, “os corpos dóceis” sem vontade própria
e completamente submissos, nem tão pouco se alhearam dos problemas da
sociedade, de «fuga ao mundo» vivendo as suas próprias vidas e alheios aos
problemas sociais.
Bem pelo
contrário, refletiram sobre as transformações profundas que se estavam a
verificar na sociedade e lutaram, pacificamente e de forma original,
enfrentando o poder não só em Itália, como alargaram a sua luta com outros
povos e contra outros poderes no mundo.
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