O progresso tecnológico trouxe, de entre outras
coisas, maior liberdade de movimentos; através dos média, uma outra amplitude
da visão do mundo, e a democratização do poder político. A sociedade liberta-se
do jugo da tirania, derruba fronteiras com respeito pela liberdade individual e
pela assunção da responsabilidade pessoal, cultivando os valores espirituais
que apoiam o ideal da civilização.
Todavia, um novo tipo de indivíduo depressa ganha
influência na sociedade: o homem da multidão, «o homem-massa», que surge em
todas as classes sociais; entre os ricos e os pobres, os cultos e os
ignorantes. E esta ascensão do homem-massa – a rebelião de massas – ameaça
directamente os valores e ideais da democracia liberal e do humanismo, as
tradições em que se desenvolve a espiritualidade e a moral do homem livre, a
garantia dos fundamentos de uma sociedade livre e aberta. Encara o indivíduo e
a sociedade numa perspectiva diferente: recusa o confronto com os valores
intelectuais e espirituais; não há medida ou valor que lhe possam ser impostos
ou limitados. A vida deve ser sempre fácil e abundante. O esforço intelectual é
desnecessário; não avalia criticamente as suas opiniões nem tem em conta as
outras pessoas. Isto reforça nele o sentimento do poder, o desejo de controlar.
Só ele e os seus congéneres contam, os outros terão que adaptar-se. Tudo o que
seja diferente e de pouca ou nenhuma importância a seus olhos simplesmente não
deve existir. Ajusta a sua aparência aos ditames da moda e as suas opiniões são
moldadas pelos meios de comunicação. Livre de qualquer esforço intelectual, o
homem-massa não pensa, erra sem objectivos pela vida, sem referências, verdades
ou princípios orientadores, agarra-se às massas e deixa-se levar por elas.
No século XX,
os fenómenos de massa, a histeria de massas, são uma consequência fundamental
do psiquismo deste homem moderno, destituído de espírito e indiferente. O medo
e o desejo dominam o comportamento de massas.
Nesta cultura social, caracterizada pela falsidade e
ilusão, que sobrevaloriza a tecnologia, a velocidade, o dinheiro, a fama, as
celebridades e os aspectos exteriores, que despreza os valores mais nobres e
orienta toda a sua existência para a satisfação do prazer, as consequências
poderão ser pesadas.
A não existência de valores espirituais absolutos
torna tudo subjectivo, porque deixou de haver critérios objectivos para avaliar
os nossos actos. O meu ego é a medida de tudo e só interessa aquilo que eu sinto, aquilo que eu penso. Eu exijo que o meu gosto, que a minha opinião e a minha
maneira de ser sejam respeitados, senão eu
ficarei ofendido. O ego sensível como medida de todas as coisas recusa qualquer
crítica e ignora a autocrítica. A vida espiritual já não é relevante. Já não
somos a expressão de valores, mas de aspectos materiais. Compramos a nossa
identidade, adaptámo-la e modificámo-la para que a possamos exibir perante o
maior número de pessoas possível, esperando que nos achem agradáveis. O
agradável passa a ser a medida de tudo.
As nossas relações devem ser agradáveis: como os
amigos, o estudo, o trabalho, o tempo livre, os meios de comunicação social, os
desportos, os jogos, os passatempos e a arte têm de ser acima de tudo
agradáveis e, se porventura não nos sentirmos bem e não conseguirmos solucionar
o problema mudando de relações ou de ocupação, engolir um comprimido por certo
afastará a sensação de mal-estar, pois o mercado tê-lo-á à nossa disposição.
Numa sociedade sem valores, a política é uma espécie
de circo onde alguns se esforçam por conquistar e manter o poder através de
frases propagandísticas e de uma imagem pública. É uma sociedade onde a
economia é dominada pelo lucro a qualquer preço, em detrimento das pessoas, do
ambiente e da qualidade, e que exige que o homem se adapte, seja competitivo,
produtivo comercial e que não seja quem é. A educação, em lugar de formar o carácter para ajudar as pessoas a viverem na verdade, a criarem beleza, justiça
e transmitir sabedoria, degenera num instrumento de transmissão de tudo o que é
utilitário, de conhecimentos úteis à economia e de tudo o que necessitamos para
saber ganhar dinheiro
Tudo o que existe, existe porque é considerado útil
e/ou fonte de prazer, nada conserva o seu valor intrínseco. Numa sociedade de
estilo estético associado a estereótipos sociais e culturais e a um tipo de
sensibilidade que se adequa ao gosto da maioria (aquilo a que na sociedade
alemã se designa, a sociedade kitsch), há a tentação
irresistível do agradável e do belo, mas do belo falso, como uma maquilhagem
utilizada para seduzir mas que esconde um imenso vazio espiritual, uma mentira
que sugere que algo tem valor e é importante, mas que, de facto, não passa de
uma constante fuga para a frente do espírito que sabe que as aparências são
ilusórias e não duram sempre. Logo que se dissipam, a vida deixa de ser
agradável e ficamos horrorizados ao descobrir o quanto somos fúteis e, então, o
homem-massa sente o despertar do ressentimento, do ódio e do rancor.
Não se nasce homem-massa. Ser emancipado é ter consciência
da liberdade, é ganhar consciência das grandes questões existenciais, sobretudo
do sentido da vida. E muitos de nós, especialmente os que não têm uma vida
fácil, somos abandonados na busca de respostas a estas questões e nas
tentativas de vivermos uma vida livre e responsável.
Somos abandonados pelas elites políticas, de esquerda
e de direita, que renunciam aos seus princípios e ideais, trocando-os pelas
boas graças do eleitorado e pelo que está na moda, impelidos pelas
conveniências e pelo populismo que não é mais do que uma política enganadora,
por aquilo que representa dos atuais medos e desejos de uma sociedade de
massas.
Somos abandonados pelo sistema educativo que, ao
invés de uma educação liberal da arte e das humanidades, de uma educação espiritual
e moral que permita ao indivíduo tornar-se uma pessoa de caracter, se curvou
aos ditames do que é útil ao Estado e às empresas.
Somos abandonados pela elite do mundo dos negócios
que exerce grande influência na nossa democracia capitalista e envenena a
sociedade com a ideia de que ganhar dinheiro é a coisa mais importante da vida,
difundindo a crença do valor de mercado como medida do que é ou não importante
e destruindo grande parte dos valores imateriais que, embora não rendam
dinheiro, custam dinheiro (a arte, o património, a assistência a pessoas
vulneráveis).
Somos abandonados por intelectuais que negam todo o
princípio religioso, político e social, que consideram o humanismo
ultrapassado, que não existe verdade absoluta nem valores espirituais, que tudo
pode ser mudado e que os valores universais e intemporais são do passado.
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