Tratar as pessoas como tal, ou seja, humanamente, consiste em pormo-nos no seu lugar. Reconhecer alguém como semelhante implica compreendê-lo a partir de dentro para percebermos os seus pontos de vista. Sempre que nos relacionamos com outra pessoa estabelecemos um terreno no qual o “eu” se transforma num “tu” e vice-versa. Admitimos que há algo de fundamental igual entre nós e a possibilidade de eu ser para o outro o que o outro é para mim. Quando nos cruzamos reconhecemos que, de certo modo, pertencemos a quem está diante de nós e quem está diante de nós nos pertence. Ter consciência da minha humanidade consiste em dar conta que, apesar das diferenças reais entre os indivíduos, eu estou, de certo modo, dentro de cada um dos meus semelhantes.
Pormo-nos no lugar do outro é mais do que a comunicação com ele: é levar em conta os seus direitos para compreender as suas razões. Qualquer homem tem direito perante os outros homens – direito humano. Direito a que o outro tente pôr-se no seu lugar e compreender o que ele faz e o que sente, mesmo para o condenar em nome das leis que a sociedade admite. Pormo-nos no lugar do outro é tomá-lo a sério, considerá-lo igual a nós próprios.
Tal não significa que devemos renunciar aos nossos próprios interesses para darmos prioridade aos interesses do outro. Os meus interesses são tão respeitáveis como os interesses do outro. No entanto, os interesses que possa ter são todos relativos excepto um, o único interesse absoluto: o interesse de ser humano entre os humanos, de dar e receber um tratamento humano, sem o qual não existirá “vida-boa”. Nada pode ser tão interessante para mim como a capacidade de me colocar no lugar daqueles com os quais os meus interesses se relacionam. Ao colocar-me no seu lugar devo ser capaz de atender às suas razões, como terei de participar nas suas paixões, sentimentos, dores, anseios e prazeres, sentir simpatia pelo outro, de não o deixar só no seu pensar ou no seu querer, reconhecer que somos feitos da mesma massa, ideia, paixão e carne ao mesmo tempo.
Ser capaz de me pôr no lugar do outro, aceitando que ele é meu semelhante, não significa que deva dar-lhe sempre razão, nem tão pouco que deva comportar-me como se fôssemos idênticos. Nem sempre devemos fazer aos outros o que queremos que façam a nós: eles podem ter gostos diferentes. Os seres humanos são todos semelhantes e seria bom que fôssemos iguais em oportunidades ao nascer e, depois, perante a lei, mas não somos nem temos de nos esforçar por ser idênticos. Pôr-me no lugar do outro é esforçar-me objectivamente e tentar ver as coisas como ele as vê e continuar a ser eu. O primeiro dos direitos humanos é não sermos fotocópias do nosso semelhante, é o direito a sermos, mais ou menos “esquisitos” e não temos o direito de obrigar o outro a deixar de ser esquisito, a menos que essa “esquisitice” prejudique directa e claramente o próximo.
Colocarmo-nos no lugar do próximo também tem que ver com aquilo a que se chama justiça. Não aquela que tem a ver com leis e tribunais, mas da virtude da justiça: a habilidade e o esforço que devemos praticar se quisermos viver bem, de entendermos o que o próximo pode esperar de nós. Muitas vezes, por mais legal que seja o nosso comportamento, por muito que respeitemos os códigos, o nosso comportamento pode ser injusto. A vida é demasiado complexa, as pessoas demasiado diferentes, as situações muito variadas e por vezes íntimas para que tudo possa ser regulado nos tratados de jurisprudência. Assim como ninguém pode ser livre em meu lugar, também ninguém pode ser justo por mim se não perceber que devo ser justo para viver bem. Para entender o que o outro espera de mim terei que amá-lo um pouco, ainda que seja só por ele ser também humano. E isto não pode ser imposto por nenhuma lei instituída. Viver bem significa ser capaz de uma justiça simpática, ou de uma compaixão justa.
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