quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Agualva, – Sintra e D. Domingos Jardo

«O povoamento do território da freguesia remonta à conquista Cristã de Lisboa e Sintra aos Mouros, em 1147, por D. Afonso Henriques. A primeira referência conhecida surge nas inquirições Afonsinas de 1220.

No século XII, “Agualva” e Cacém já eram povoadas. O curso da ribeira das Jardas ou da Água Alva demarcavam então os limites administrativos e paroquiais. Agualva e outros lugares da margem esquerda da Ribeira faziam parte da freguesia de Belas, enquanto Cacém, São Marcos e outros lugares da margem direita estavam integrados no termo de Sintra e faziam parte da freguesia de Rio de Mouro.

Note-se que Agualva, enquanto lugar da freguesia de Belas era lugar conhecido por Jardo, o que levou o célebre Bispo de Lisboa, D. Domingos, por ter nascido ali, a apelidar-se de Jardo.

Nos séculos seguintes expandiu-se o povoamento e a ocupação do território com o aparecimento de várias quintas solarengas (Quinta da Barroca, Quinta da Fidalga, Quinta do Tojal, etc.). No final do séc. XVIII Agualva-Cacém teria cerca de 450 habitantes e em meados do séc. XIX cerca de 500. A 3 de Junho de 1709 é dado alvará à feira de Agualva, uma das mais antigas da região saloia, com o objetivo de manter a ermida de Nª. Sra. da Consolação.

Em abril de 1887, com o estabelecimento da ligação ferroviária entre Lisboa e Sintra, veio o desenvolvimento económico e o aumento demográfico. A ligação por caminho-de-ferro marca, a partir daí, o destino de Agualva-Cacém, deixando para trás tempos em que a ribeira das Jardas fertilizava as terras e movia as azenhas, oferecendo-se aos banhos da miudagem, aos amantes da pesca e aos piqueniques das famílias em férias.

(…)»

(https://www.jf-agualvamirasintra.pt/a-freguesia/origemhistoria/)

Segundo o Diccionario Geografico do padre Luís Cardoso, Agualva é «Lugar na Província da Estremadura, Patriarcado de Lisboa e Termo da Cidade de Lisboa, Comarca de Torres Vedras, Freguesia de Nossa Senhora de Misericórdia de Belas: tem trinta e oito vizinhos com sua Ermida dedicada a N. Senhora da Consolação, Imagem milagrosa e de muita romagem no mês de Maio. Há outra Ermida dedicada a N. Senhora do Carmo, de José Ramos da Silva, Provedor da Casa da Moeda.»

Agualva era antigamente um pequeno lugar chamado Jardo, ou Jarda, situado na margem esquerda da Ribeira das Jardas, de águas puras e cristalinas, e, por isso, supõe-se, os romanos lhe chamaram “Aqua Alba”, nome que, por corrupção, derivou para Agualva.

No que diz respeito ao topónimo ribeira da Jarda, ou Jardas, conta uma lenda que após a conquista de Lisboa aos mouros, D. Afonso Henriques terá agraciado um cruzado inglês pela sua participação nas lutas, recompensando-o com umas terras atravessadas pela ribeira. O cruzado mediu-as utilizando a medida inglesa, a jarda, admitindo-se que possa vir daí a denominação.

Esta ribeira nasce a leste de Sintra, na Serra da Carregueira (Almornos) e vai desaguar no Tejo, próximo de Oeiras (praia de Caxias), tomando diversos nomes, segundo as povoações por onde passa, ao longo do seu percurso de cerca de vinte quilómetros: das Jardas, da Jarda ou do Jardo, do Papel, de Barcarena, dos Ossos, etc.

Ao longo da história, a Ribeira das Jardas separou as povoações das suas margens. Na margem esquerda Agualva e na margem direita o Cacém. Sendo já terras cristãs, as povoações das duas margens continuaram divididas administrativamente. De acordo com as memórias paroquiais de 1785, Agualva pertencia à freguesia de Belas, enquanto que o Cacém pertencia à de Rio de Mouro. Segundo uma lenda, o nome de Rio de Mouro se deve à bravura dum mouro de nome Albaraque, que heroicamente se terá batido contra os cristãos e que tingiu as águas do rio com o seu sangue, passando o sítio onde morreu a chamar-se Rio de Mouro.

Em Agualva, já na Idade Média e na margem da Ribeira das Jardas, se situavam duas importantes quintas contíguas: a da Barroca e a quinta dos Loios, que ainda sem esse nome se vai tornar célebre, por nela provavelmente ter nascido, no início do século III, o famoso arcebispo de Lisboa, D. Domingos Jardo. As duas margens desta ribeira eram aproveitadas para cultivo e foram povoadas, pelo menos a partir do século XII, formando quintas, ou “quintãs”, no dizer de então. Nas partes baixas eram as hortas e os pomares, e nas encostas os olivais. Para rega, socorriam-se das fontes dos afluentes e de numerosas azenhas no rio. Os primeiros moradores talvez tenham sido os mouros, fugidos de Lisboa para a periferia e que povoaram e cultivaram as “terras saloias”.

As duas povoações uniram-se numa única freguesia civil em 1953, passando a denominar-se Agualva-Cacém, fazendo parte desta as povoações de São Marcos e Mira Sintra.

Agualva-Cacém constituía uma única paróquia, com sede na antiga capela de N. S. da Consolação que, na sua primeira fundação, data do século XVI. Mais tarde, a partir desta matriz foram criadas três circunscrições eclesiásticas: Agualva, Cacém e Mira Sintra. O lugar de São Marcos pertenceu, até 1953, à freguesia e paróquia de Rio de Mouro, passando para Agualva-Cacém, quando esta freguesia foi criada.

Ao longo dos séculos, com o aparecimento de várias quintas, expandiu-se o povoamento e a ocupação do território nas duas margens da Ribeira. No primeiro quartel do século XVII, em resultado de uma petição a D. João V., feita pela Irmandade de Nª Sª da Consolação de Agualva, é dado alvará à Feira de Agualva, uma das mais antigas da região Saloia, com o objetivo de manter a ermida da santa.

O estabelecimento da ligação ferroviária entre Lisboa e Sintra, no último quartel de século XIX, veio incrementar o desenvolvimento económico e o aumento populacional. O caminho de ferro marca e destino de Agualva-Cacém, deixando para trás os tempos em que a Ribeira das Jardas fertilizava as terras e movia as azenhas. A freguesia transforma-se numa das áreas suburbanas da grande Lisboa, dando origem a uma explosão ao nível da construção civil, traduzida numa urbanização onde os níveis de qualidade de vida nem sempre foram tidos em conta.

Elevada a vila a 20 de setembro de 1985 e a cidade em 12 de julho de 2001, a antiga freguesia de Agualva-Cacém foi administrativamente desdobrada em quatro freguesias: Agualva, Cacém, Mira Sintra e São Marcos, no dia 3 do mesmo mês.

Após a elevação a cidade, esta passou por vários projetos de beneficiação por parte da Câmara Municipal de Sintra, mas principalmente por parte do Programa Polis (Projeto para a requalificação das cidades europeias), com o objetivo da valorização do património histórico ou natural e a sua reintegração na própria cidade, o qual mudou radicalmente a estrutura central de Agualva-Cacém e melhorou substancialmente o seu estatuto de cidade, que assim passou a dispor de um parque urbano (Parque linear da Ribeira das Jardas).

Atualmente a cidade do Cacém é constituída por duas freguesias, Agualva e Mira Sintra, e Cacém e São Marcos, e é o reflexo de um dos mais progressivos centros urbanos da área metropolitana de Lisboa e um dos maiores centros populacionais do país.

D. Domingos Anes Jardo

Foi neste lugar, outrora chamado Jardo, ou Jarda, hoje conhecido com o nome de Agualva, que nasceu o arcebispo D. Domingos Anes Jardo, que da sua terra adotou o sobrenome de Jardo.

São pouco conhecidas as origens familiares e sociais de D. Domingos Anes Jardo e desconhece-se a data do seu nascimento. Há relatos em que se menciona as suas origens humildes. O relato de um encontro emotivo do então bispo de Évora com sua mãe, na sua aldeia de origem, parece realçar uma longa, embora distante, proteção dispensada à sua família. Dados que perecem difíceis de confirmar, assim como os dados sobre os primeiros anos da sua vida. É mencionada uma lápide existente no mosteiro de S. Vicente, alusiva à sepultura de sua mãe e de sua avó, onde constaria a data de 1286, e que poderia ser a data da transladação dos corpos para o dito mosteiro, sendo já D. Domingos bispo de Évora.

Acredita-se também que D. Domingos Jardo tenha crescido à sombra e proteção de seu tio, Martinho Miguéis, prior de S. Jorge de Coimbra, e que, dada a ligação do mosteiro de S. Jorge à corte desde os reinados dos primeiros monarcas, se explique a proximidade que D. Domingos parece protagonizar a D. Afonso III. De facto, a partir do final do século XIII, o seu nome começa a ser referido na documentação régia.

Muitas das vezes a entrada de um clérigo, a quem o nascimento nobre não distinguia particularmente nos círculos políticos régios, era feita através da influência de um parente próximo, noutros casos o saber e a distinção demonstrada por uma forma superior poderiam suprir a ausência de um enquadramento familiar. O percurso de D. Domingos Jardo poderá ter beneficiado de vários destes fatores.

Estes processos de ascensão social que parecem centrar-se, na sua maioria, em torno das carreiras eclesiásticas, refletem, no contexto da sociedade medieval, o papel da Igreja enquanto reguladora do espaço social e também, enquanto instituição, o garante de alguma mobilidade social e, por conseguinte, a estabilidade das hierarquias dominantes.

Uma tradição pouco documentada, mas veiculada por diversos autores, colocam-no como estudante na Universidade de Paris, para onde teria ido para ser formado em Direito Canónico, mas também se afirma, com base na constante menção a um Domingos Anes, identificado como cónego de Évora num testamento feito em Salamanca, com a indicação do seu nome num grupo de eclesiásticos dados como testemunhas do documento, que D. Domingos teria estudado em Salamanca.

Tendo em conta a atração exercida pela Universidade de Salamanca sobre os escolares de Portugal, é possível que que aí tenha efetuado os seus estudos, mas verdade seja que poucos ou nenhuns são os dados que permitam afirmar que D. Domingos Jardo tenha adquirido uma formação superior.

A primeira referência relativa ao percurso eclesiástico de D. Domingos Anes, indica que teria tido uma conezia (dignidade de cónego) na diocese eborense e, pelo menos desde 1270, o seu nome faz parte de um grupo de clérigos do rei que testemunham muita documentação de D. Afonso III. Em 1272 seria apresentado, pela mão de Afonso III, para a igreja de Penas Róias, no Mogadouro.

O título de clérigo do rei, que o acompanhou até ser nomeado bispo de Évora, marcou não só o desempenho de funções específicas, mas atestava o favorecimento de que era objeto por parte do rei e a existência de uma relação de dependência do poder real. Apesar de não ser um estatuto exclusivo, face a um grupo numeroso clérigos contabilizados ao longo do reinado, a verdade é que este grupo ganhou centralidade e dimensão pela forma como surgem recorrentemente como testemunhas ou confirmantes dos documentos régios exarados e, no desempenho deste lugar, muitos deles irão encontrar uma plataforma para a posse de outros benefícios.

Apesar disso, os anos 70 do século XIII representaram um período muito conturbado nas relações entre D. Afonso III e o clero secular. A partida para a Cúria, com exceção dos bispos de Lisboa e Évora, da maior parte dos bispos portugueses, em 1267, vai dar início a uma longa fase de conflito, marcada com momentos de maior ou menor oposição e acompanhada, por um longo período, do interdito (excomunhão) ao qual o reino ficou sujeito. Ainda assim, neste contexto de oposição, D. Domingos Anes Jardo continuará a surgir em muitos documentos como testemunha e será uma presença atenta em muitos dos momentos que irão marcar essa época.

A vinda a Portugal de frei Nicolau, como enviado do papa João XXI, incumbido de tentar resolver o conflito entre D. Afonso III e os bispos, é um dos momentos melhor documentados. Frei Nicolau foi presença assídua na corte entre os primeiros meses de 1277 e agosto do mesmo ano. As atas desta legacia constituem documento chave para o conhecimento de Afonso III e, também, basilares para a análise política no relacionamento com a Igreja. O resultado dos inúmeros encontros entre o legado papal e o rei ficaram muito aquém do que seriam as pretensões da Igreja, como ficaram igualmente aquém das pretensões que o monarca pretendia obter.

Estes encontros eram presenciados por um numeroso grupo de nobres e de clérigos, entre os quais D. Domingos, cujos nomes vêm mencionados nas atas. O então clérigo e conselheiro do rei, identificado como tal nesta documentação dos anos finais de D. Afonso III, revela uma crescente proximidade ao rei, testemunhando alguns dos momentos de maior confronto entre o monarca e o enviado do papa, nos quais a afirmação do poder régio, quer pela via do adiamento estratégico das resoluções, quer pela recusa em dialogar, se impõe. E se a presença, aparentemente incontestável, junto ao monarca, parece colocá-lo do lado oposto dos prelados exilados em Roma, a dureza e ferocidade que perpassam pelo relato do legado do papa não terão sido estranhas nem indiferentes ao clérigo que se formava ao serviço do rei.

Surpreende-o a morte de D. Afonso III e é com estatuto de conselheiro que terá feito parte do grupo de eclesiásticos que acompanharam o monarca na última fase da sua vida, tendo estado presente ao arrependimento do rei e à exortação feita a D. Dinis para que cumprisse as suas últimas disposições em relação à Igreja, explicando a aparente continuidade de carreira que ultrapassa a mudança de reinado e encontra clara e pacífica sequência nos primeiros anos do reinado de D. Dinis.

Contrariamente à opinião de alguns autores, D. Domingos Jardo terá sido nomeado chanceler, mas apenas em 1281, e manteve este título até cerca de 1290/91, aliás, em 1284, D. Dinis reitera a doação já feita da chancelaria, com o objetivo de que não surgissem dúvidas sobre a posse legitima desse lugar e aproveita esta confirmação para acentuar que lhe dá igualmente a posse de todos préstamos (impostos) ligados à chancelaria, à semelhança do que tinha sido detido pelo chanceler de D. Afonso III.

Em 1284 D. Domingos Anes Jardo foi escolhido para a diocese de Évora e aí permaneceu até 1289. Em outubro deste ano é requerido pelo cabido de Lisboa, numa eleição disputada com D. Pedro, cónego de Coimbra. D. Domingos tem agora o favor do papa, que o transfere para a diocese de Lisboa (7 de outubro), onde permaneceu até à sua morte, enquanto o seu opositor, D. Pedro, é nomeado para Évora.

Com esta transferência o papa fechava um ciclo na vida de D. Domingos Anes Jardo, assegurando-lhe o lugar de prelado numa diocese que já no início dos anos 80 tinha procurado sem sucesso após a morte de D. Mateus (1282). Em maio de 1286, o papa Honório IV tinha preferido Estevão de Vasconcelos, deão (o que preside ao cabido) de Braga e capelão pontifício, acabando D. Domingos por assumir o bispado de Évora.

Pelo meio tinham ficado algumas disputas, ou pelo menos expetativas, por parte de D. Domingos. Possivelmente eleito nos últimos meses de 1282 ou primeiros meses de 1283, em dezembro deste último ano, D. Domingos é identificado na chancelaria régia como bispo eleito de Lisboa, pelo menos entre fevereiro de 1283 e janeiro de 1284.

Estas referências na chancelaria revelam o normal e quase sempre longo processo de confirmação papal e a aparente concordância do rei com esta eleição. D. Dinis veria com bons olhos a eleição do seu chanceler para bispo de Lisboa, pois esta escolha seria a consagração de uma carreira eclesiástica junto do poder régio, colocando no comando da estrutura diocesana alguém em quem devia inevitavelmente confiar.

Porém a decisão inicial da papa não foi neste sentido. A morte do bispo de Lisboa, D. Mateus, aconteceu em 1282, e só em 1286 o papa Honório IV nomeia para o lugar vago D. Estevão Anes de Vasconcelos, deão de Braga e capelão pontifício, ficando D. Domingos em Évora, como se diz atrás.

Na nomeação de D. Estevão, o papa refere uma reserva feita pelo anterior pontífice, Martinho IV, pelo facto de D. Mateus ter falecido na Cúria, legitimando assim a sua decisão. Com esta nomeação talvez o papa tenha preferido favorecer alguém com carreira ou proximidade a Roma, como o seu título de capelão revelava, assim como é possível entrever nesta escolha a influência do ambiente toldado pela dissensão (desavença) que continuava a marcar as relações do poder régio com o clero e com Roma desde 1267, com a saída da maior parte dos bispos portugueses para a Cúria e a intenção de não colocar em dioceses centrais eclesiásticos cuja lealdade se antevia mais em função do rei do que da cúria. O facto de nesta nomeação não ter sido enviada ao rei a usual carta da recomendação dos novos bispos, e que acompanhava as missivas dirigidas ao cabido e à diocese, demonstra a animosidade existente nas relações entre a realeza de Portugal e o papado e como o papa procurava pressionar D. Dinis a avançar com o processo de conciliação.

Qualquer que fosse a razão, a verdade é que a partir de 1284 D. Domingos surge como bispo de Évora e o bispado de Lisboa permanece vago. É de 24 de junho, o primeiro documento régio que o refere como eleito de Évora, embora a sua nomeação seja de 24 de março de 1285 (estaria eleito desde 17 de junho de 1284). A acreditar nestas datas, a chancelaria régia, sob o comando do próprio D. Domingos, não tardou muito a reconhecer o estatuto de eleito de Évora. Caberá precisar que entre a morte do anterior bispo (D. Durando) e a eleição de D. Domingos há um hiato de mais de um ano, tempo decorrente dos trâmites processuais que teriam lugar nesta diocese e sobre os quais pouco se sabe.

Foi um afastamento provisório para D. Domingos Anes Jardo. Nos últimos anos da sua vida viria de novo a conflituar sobre o acesso ao episcopado de Lisboa, mas desta vez com sucesso. Feito bispo de Lisboa em 1289, veio a morrer em 16 de dezembro de 1293.

D. Domingos Jardo instituía, em abril de 1291, o hospital dos santos Paulo, Elói e Clemente, na freguesia de S. Bartolomeu (a), em Lisboa, determinando a manutenção de seis estudantes pobres: dois de Direito e Teologia, quatro de Gramática, Lógica, Filosofia Natural e Medicina. O documento de instituição, à semelhança de outros da época, dispunha com pormenor a organização interna do hospital, as refeições e a roupa que deveria ser entregue a cada um dos moradores no hospital, tem sido objeto de uma particular atenção, dada a sua ligação à história da Universidade em Portugal.

Esta instituição não terá sido a única ou a que originalmente terá feito nas suas casas situadas na freguesia de S. Bartolomeu. Em agosto de 1284 D. Dinis emitia uma carta de proteção ao hospital criado por D. Domingos nas suas casas de Lisboa, em honra de Santa Maria, mãe do Salvador e de Todos os Santos. Mais tarde, em junho de 1285, retornava o rei ao hospital fundado por D. Domingos, mencionando que a sua fundação tinha sido feita por alma de seu pai, D. Afonso III, da sua e da do bispo, pelo que o autorizava a comprar bens destinados ao hospital, contornando as leis de desamortização, e em 1286 doava ao hospital, fundado por alma de seu pai, o padroado da igreja de S. Bartolomeu. Tudo isto aponta para a existência, já em fins da década de 80, de um hospital fundado por D. Domingos Jardo.

Em novembro 1288, era solicitado ao papa Nicolau IV, por um grupo de eclesiásticos, autorização para a utilização das rendas dos mosteiros e igrejas no pagamento dos mestres e doutores que viessem a fazer parte do Estudo Geral a ser criado por D. Dinis, a pedido deste mesmo grupo. Esta autorização foi concedida em 1290 pela bula De Statu Regni Portugaliæ, autorizava a criação do Estudo Geral e definia os graus que podiam ser concedidos.

É na sequência desta bula que o hospital, anteriormente fundado por D. Domingos, sofre uma assinalável alteração. Invocando a memória de D. Afonso III, a proteção de D. Dinis e procurando responder às preocupações do papa no sentido de ser concedido apoio aos estudantes, D. Domingos Jardo estabelece, em abril de 1291, a obrigatoriedade do apoio a seis estudantes de diferentes áreas e muda o seu orago, dedicando-o aos santos Paulo, Elói, Clemente e a Todos os Santos, doa todos os seus bens à hora da morte e estabelece as condições que devem reger o seu funcionamento. Assim, dedicou 200 libras anuais à manutenção dos seis estudantes pobres, embora de forma desigual; a cada dois estudantes de Direito e Teologia caberia 50 libras e a cada um dos restantes quatro estudantes, 25 libras anuais, pelo prazo máximo de cinco anos. Com estes seis estudantes deveriam ainda viver dez sacerdotes encarregues da celebração diária e outros tantos pobres. Finalmente definiu a entrega da administração do hospital a Afonso Anes, cónego de Évora, o qual viria também a nomear, alguns meses mais tarde, como seu testamenteiro, evidenciando entre ambos uma proximidade e confiança significativas.

Referenciado como um dos primeiros exemplos de uma fundação dedicada ao apoio de estudantes pobres, este hospital beneficiaria nos anos seguintes do apoio papal, como patenteia a bula de Bonifácio VIII (1294-1303) de 1295, que aprova a instituição com a obrigação de manter os seis estudantes pobres, autorizados a pregar e a ouvirem confissões.

O próprio D. Domingos, como bispo de Lisboa, privilegia o hospital, ao qual tinha entregue todos os seus bens antes de ser nomeado como bispo de Évora e de Lisboa, em outubro de 1293, data próxima da sua morte, identificando-o como hospital e mosteiro, e autorizava os estudantes residentes a pregarem e a ouvirem confissões em toda a diocese, realçando que a outorga deste privilégio não implicava a revogação da anterior dádiva de 200 libras para a sua manutenção.

Antes da sua morte, D. Domingos Anes Jardo preocupou-se com a preservação da sua memória e com o destino da sua alma. O testamento, redigido em 1291, reflete claramente essas preocupações.

Nele dispõe de todos os seus bens de raiz que possuía antes de ser bispo de Lisboa em favor do hospital por ele fundado, fazendo seus herdeiros os pobres, os clérigos e leigos que nele habitassem. Escolhe esta instituição como lugar da sua sepultura, como depositária de todos os seus livros, que mereceram particular atenção por parte do testador. Assim, o que mencionava serem os seus livros de Direito Canónico e Civil bem como todas as súmulas, doa a dois parentes: Martim Mateus e Afonso Martins, com a condição de usufruírem deles apenas em vida, retornando ao hospital após as suas mortes. Supõe-se que estes dois parentes estivessem ligados ao ensino de Direito como estudantes. Um outro grupo de livros de Teologia, oriundos da Livraria de D. Durando, seu antecessor em Évora, foi doado diretamente ao hospital. Esta última doação é reveladora dos possíveis laços existentes entre estes dois eclesiásticos, bispos de Évora, talvez forjados ou reforçados nos meandros do serviço régio, dos quais ambos participaram.

D. Domingos deu também atenção à partilha dos seus bens móveis por muitos dos que o tinham servido, assim como pelas instituições religiosas, das quais esperava intercessão pela sua alma. Foram vários os mosteiros e igrejas contemplados, nomeadamente os cenóbios (conventos) de Alcobaça, Santa Cruz de Coimbra e S. Vicente de Fora de Lisboa, assim como para ordens militares. A todos pediu intercessão por sua alma, pela de D. Durando (seu antecessor em Évora), de D. Airas, bispo de Lisboa, e de sua mãe e avó.

Beneficiou ainda os seus familiares, como Pedro e João, identificados como filhos de Urraca, sua parente, assim como os seus criados, legando quantias significativas para obras pias. Privilegiou os pobres, as viúvas dos bispados de Lisboa e Évora, as donzelas pobres e vários hospitais, não esquecendo todos os mosteiros da Estremadura e do Alentejo, aos quais tinha destinado um quinhão particular.

No seu testamento, o eixo do seu trajeto pessoal e eclesiástico assume particular centralidade. Nomeou Paio Domingues, deão de Évora, João Martins, cónego de Lisboa, Afonso Anes, cónego de Évora e Airas Martins, pedindo a todos que atuassem de acordo com o conselho de D. Dinis, prevendo ainda que, em caso de morte de algum dos testamenteiros, este fosse substituído por mestre Bartolomeu, reitor da igreja de S. Bartolomeu de Lisboa.

Ao aproximar-se o seu fim, D. Domingos Anes Jardo reestruturava, através do seu testamento, os círculos pessoais e institucionais que tinham marcado o seu trajeto e construía uma memória da sua vivência.

Conforme o obituário da Sé de Lisboa, D. Domingos Anes Jardo faleceu no dia 16 de dezembro de 1293 e, tanto no mosteiro de S. Vicente de Fora, como na Sé de Coimbra, eram celebrados aniversários por sua alma no dia da sua morte.

Poder-se-á dizer que deixou um longo e linear percurso onde o saber, a lealdade e o serviço ao poder real, assim como a integração nos círculos políticos do final do século XIII, se conjugaram de forma modelar.

(a) Esta freguesia não existe e, segundo apurei, ficaria na atual zona da Mouraria. (“Os velhos hospitais da Lisboa antiga” https://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/obras/RevMunicipal/N10/N10_master/N10.pdf)

Fontes:
Dicionário Geográfico ou Noticia Historica, Pdre. Luís Cardoso da Congregação do Oratorio de Lisboa, Academia Real do Numero da Historia Portuguesa, Tomo I, Regia Officina SYLVIANA, e da Academia Real, MDCCXLVII. Biblioteca Nacional de Lisboa. Págs. 73 a 74.
Repositório da Universidade de Évora; Bispos e Arcebispos de Lisboa; Centro de Estudos da Universidade Católica de Lisboa; Domingos Anes Jardo (1289-1293).
Crónica – Dom Domingos Jardo e a Universidade Católica Portuguesa. https://revistas.ucp.pt/index.php/lusitaniasacra/article/view/7808/7600
https://jf-riodemouro.pt/rio-de-mouro/heraldica/
http://www.sintraromantica.net/pt/visitar/rota-do-patrimonio-historico-cultural/106-agualva-cacem/756-ribeira-das-jardas

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Mário Lobo (1912/1937)


Desaparecido nas inundações que assolaram os lugares de Agualva e Cacém, Sintra

O desaparecimento, a 20 de novembro de 1937, de Mário Lobo da Conceição, com 25 anos de idade, bombeiro de 3ª classe dos Bombeiros Voluntários de Agualva-Cacém (BVAC), encerra na sua singularidade, uma das mais insólitas mortes ao serviço dos bombeiros portugueses.

Supostamente arrastado pela fúria das águas (o seu corpo nunca foi encontrado) quando se julga que tentava prestar socorro às vítimas das inundações que naquela data atingiram ambos os lugares das margens da ribeira da Agualva, o infeliz Mário Lobo acabou por ser vítima da sua abnegação. Diz-se supostamente, uma vez que nem bombeiros nem populares testemunharam o acidente, sendo por isso difícil determinar objetivamente as condições do seu desaparecimento. Porém os testemunhos divulgados pela imprensa da época parecem fazer sentido, sustentando até hoje a única versão existente sobre a morte de Mário Lobo.

Na noite do temporal, segundo a informação publicada no “Diário de Notícias do dia 23, Leonel Baptista, um miúdo de 12 anos, terá visto um vulto na cheia, chamando a atenção do seu avô para o facto. Na edição do dia 25, o mesmo jornal refere:

Continua sendo assunto de todas as conversas o desaparecimento do bombeiro voluntário desta localidade, Mário Lobo, que as águas turvas e traiçoeiras tragaram quando procurava servir uma causa que há seis anos se dedicava. Corre agora uma nova versão que é a que mais se aproxima da forma como se teria dado o desastre.

O infeliz Mário Lobo não quis regressar ao quartel no ‘pronto-socorro’ e teria to­mado a rua António Nunes Sequeira, por ser o trajecto mais próximo da sua casa. Mas, ao atingir o cruzamento desta com a rua da Ponte Nova, ouvira os gritos de so­corro que partiam da casa de Manuel Pei­xinho, que estava a ser invadida pela água do rio.

O destemido bombeiro ter-se-ia desviado, para aquele local, a fim de ali prestar os socorros, tentando atravessar a ponte que o separava da casa, sendo então arrebatado pela corrente, que era fortíssima. Supõe-se ainda que nesse momento se tivesse apa­gado a iluminação pública.

Chegou-se a esta conclusão por declarações da Sr.ª D. Carinte Pombo, que da sua janela viu um vulto de capa vestida tomar esta direção. Quando foi dado o sinal de alarme, o desaparecido estava a trabalhar em casa do Sr. António Paula Lopes. Cor­rendo ao quartel, tomou uma viatura, não chegando a ir a casa fardar-se para se não demorar. Foi, depois de cinco horas de ár­duo trabalho, quando ia alimentar-se para refazer as forças, a fim de voltar a trabalhar pelo bem alheio, que encontrou a morte.

Da edição do “Diário de Lisboa” do dia 21, da notícia referente ao temporal em Lisboa e arredores, foi digitalizada parcialmente a parte das notícias referentes a Agualva-Cacém, onde se assinala o desaparecimento de Mário Lobo, mas identificado como Manuel Lobo:

Reproduz-se aqui (Arquivo dos Bombeiros Voluntários de Agualva – Cacém) o testemunho do saudoso Comandante Artur Lage, lido ano após ano, durante as comemorações de aniversário da Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de Agualva Cacém, junto ao monumento erguido em memória do abnegado Mário Lobo e perante o corpo de Bombeiros.

“20 de Novembro de 1937”

O dia surge chovendo copiosamente, com o céu carregado de nuvens ameaçadoras. Tal ameaça, confirma-se, porque pouco depois a chuva torna-se torrencial, acompanhada de violenta trovoada que se manteria por todo o dia.

Ás 11 horas aproximadamente, regista-se a primeira chamada para inundações que se verificavam no Bairro Serpa Rosa, situado junto ao túnel de passagem inferior à linha férrea, abrangendo o local onde hoje se encontra o posto, dos serviços Médico – Sociais, a Cervejaria Marisqueira do Túnel, etc. Saiu do Quartel o Pronto Socorro, único existente, de cuja guarnição eu e o Mário Lobo, fazíamos parte além de outros, sendo comandados pelo chefe Gomes Fragoso.

No local existia uma vivenda grande, sendo as restantes habitações casas baixas. Começamos por desobstruir uma regueira existente, a fim de que ela recebesse as águas que inundavam as habitações. Trabalho em vão, porque pouco tempo depois os dois rios existentes e que se juntam no Cacém de Baixo, passando a Ribeira das Jardas, galgavam as suas margens, a ponte não dava vazão, era destruída e dava-se a enorme cheia.

A rua principal do Cacém tinha configuração diferente da atual. Um muro alto era a vedação de uma quinta, ladeava a estrada desde o rio à Casa Ferreira, não existindo os atuais prédios do Café Central, Capri, Farmácia etc. esta rua transformou-se num rio com violento caudal que nos obrigava a andarmos amarrados com espias para não sermos arrastados. Agora os nossos socorros limitavam-se a retirar pessoas para andares superiores e outros lugares que oferecessem segurança. Nada mais se podia fazer face á violência da cheia.

Entretanto a chuva diminuiu de intensidade, as águas baixaram de nível e passamos a prestar assistência às casas inundadas. Móveis e outros utensílios, roupas e calçado, haviam saído pelas janelas e portas arrombadas pela violência das águas. Os prédios mais antigos foram o edifício onde hoje está a Junta de Freguesia, a central dos telefones ao seu lado e uma casa de pasto mais adiante. Fez-se tudo o que era possível relativamente ao apoio aos seus proprietários.

Tudo mais calmo, já de noite, porque o pessoal se encontrava esgotado, o Chefe Fragoso, deu ordem para voltarmos ao Quartel, a fim de nos alimentarmos e mudarmos de roupa. A Corporação era jovem e pobre e nós não disponhamos de equipamento de proteção. Vestíamos apenas fato-macaco e calçado normal. Alguns que possuíam casaco impermeável, era de sua propriedade.

Quando a viatura no seu trajeto passava próximo da casa dos pais de Mário Lobo, este pediu ao Chefe para ficar ali por ser mais próximo do que indo ao Quartel. Devidamente autorizado, desceu e nós continuámos, mas ainda no percurso, a tempestade aumentava de intensidade e quando chegámos ao Quartel as solicitações eram muitas, constando entre elas o pedido para umas casas existentes na margem norte do rio que atravessava Agualva, nas proximidades da hoje atual Rua Mário Lobo e onde os habitantes em altos gritos pediam socorro. Para ali seguira já pessoal a pé dada a proximidade prestando os devidos socorros e a viatura seguiu novamente para o Cacém de Baixo. É neste momento que segundo averiguações, tudo indica que a tragédia se consumou.

Mário Lobo que passava junto à margem oposta de onde se ouviam os gritos de socorro, tentaria atravessar o rio por uma rudimentar ponte sem amparos que ali existia, e que ele muito bem conhecia, o que contribuiu para que se aventurasse, e fosse arrastado pela violência da corrente que além da água, incluía os mais diversos objetos, alguns dos quais de grande porte.

Porém, só tivemos conhecimento da sua falta, quando seu pai João Lobo, me procurou em casa, já eu descansava perguntando-me pelo filho, porque não regressará à sua residência.

Surpresa e preocupação!

Estabelecemos contactos e de facto ninguém tinha visto Mário Lobo, na Segunda presença na cheia.

Imediatamente ao alarme dado por seu pai, fizeram-se durante o resto da noite, diligências para saber do seu paradeiro, inclusivamente nos locais onde havíamos atuado. Logo que amanheceu efetuaram-se pesquisas ao longo do rio, tendo sido encontrado o seu casaco impermeável preso numa grande raiz de uma árvore que se encontrava no leito do rio, um pouco abaixo da Tinturaria Cambournac .O casaco encontrava-se preso à árvore pela aba e tinha as mangas voltadas do avesso, o que para nós significava que o corpo de Mário Lobo passara naquele local e que o casaco ao ficar preso, se lhe despira, continuando o corpo o curso. Não restavam dúvidas.

Mário Lobo fora tragado pelas águas revoltas da cheia e a tristeza invadia-nos.

Seguiram-se dias de angústia. No dia 1 de Dezembro seguinte, já convencidos de que Mário Lobo perdera a Vida, mas na esperança de reaver o seu corpo para que lhe fossem prestadas as devidas homenagens, foram efetuadas pesquisas em profundidade, com a participação de Corporações congéneres, ao longo de toda a Ribeira das Jardas, extensiva às ruas margens, lagoas e desmuramentos, etc, etc, até Caxias, local onde desagua no rio Tejo, sem resultados positivos. Apenas foi encontrado o seu cinturão de cabedal, partido e preso a uns silvados em local do rio quando passava na Fábrica da Pólvora, em Barcarena.

Mário Lobo desaparecera para sempre!”

As obras de melhoramento, nomeadamente nas margens da ribeira das Jardas, projeto «Pólis Agualva-Cacém 2001/2009», modificaram toda aquela área e vários edifícios aí implantados já não existem.

Nos anos 60, o nome do bombeiro Mário Lobo passou a figurar na toponímia da cidade de Agualva-Cacém, numa rua situada nas imediações da presumível tragédia.

Fontes
http://bombeirosdeportugal.pt/Memoria/mario-lobo-nome-de-um-heroi-obscuro=150
http://bombeirosdeagualvacacem.blogspot.com/2011/11/desaparecido-nas-inundacoes-de-20-de.html