quinta-feira, 12 de novembro de 2020

GERALDO GERALDES – GERALDO SEM PAVOR.

 Figura semilendária da história de Portugal na época da Reconquista, personagem representativa do período de formação das fronteiras do país, terá sido um nobre nortenho de carácter difícil, que cedo abandonou a sua região para tentar a sua sorte ao sul do país nas lutas contra os mouros e liderando um bando de salteadores e aventureiros.

As suas correrias ou algaras não eram apenas sobre as populações árabes, mas incluíam também populações cristãs, sendo considerado, juntamente com o seu bando, proscrito do reino. Porém, em 1166, talvez já cansado da vida de um fora da lei, tomou Évora aos mouros e entregou-a a D. Afonso Henriques, prestando-lhe vassalagem e colocando-se assim, a si e ao seu grupo, ao dispor do seu Rei para aceitar o perdão ou castigo que este lhes quisesse impor, e aliviarem-se do longo desterro em que andavam votados.

Afonso Henriques folgou com isso perdoando a todos dos seus atos. Geraldo Sem Pavor juntou as suas forças às do exército português lutando ao lado de D. Afonso Henriques na tomada de Badajoz (1169), empresa que se revelou um desastre para as forças portuguesas e onde o soberano português, ao sair por uma das portas da cidade, entalou uma das pernas no ferrolho,  não podendo, com a dor, aguentar-se no cavalo, caiu, ficando prisioneiro dos leoneses.

Como se diz acima, Évora foi tomada por Geraldo, o Sem Pavor. A lenda a que este facto deu nascimento, tem sido posta em dúvida por alguns que, socorrendo-se à Crónica Conimbricense e Lamecense, não aludem uma palavra à história de Giraldo. A Crónica dos Godos diz unicamente que Giraldo Sem-Pavor com os salteadores seus sócios a tomou e saqueou, entregando-a depois a D. Afonso I. O escritor Alexandre Herculano, falando da conquista de Évora, diz que tal sucesso não seria de rejeitar.

António Feliciano de Castilho, nos seus Quadros Históricos de Portugal (págs. 45 a 48), narra esta lenda de forma admirável, pelo que tomo a liberdade de a transcrever aqui na íntegra:

«I — Na serra de Montemuro, a duas léguas para o nascente da cidade de Évora, existia no undécimo século um rude castelo, recém-formado no viso do mais alto e fragoso de quantos cabeços por esta parte se alevantam. Entre as suas ruínas, de uns trezentos passos de circuito, ainda hoje apelidadas Castelo de Giraldo, folgam os caçadores encalmados de se ir banhar no puro vento do céu, recostados em meio de uma espessura de medronheiros, carrascos, urzes, estevas, roselas, alecrins e rosmaninhos. Vário e saudoso é o quadro que os rodeia: para o sul, até às serras de Portel e Vianna, vastas campinas com suas searas e arvoredos, onde ressaem, aqui um antigo convento, recreação dos filhos de Loyola; lá, junto da igreja de Orega, as relíquias de um palácio, como tantos outros da província caído ao desamparo; e pouco avante a ermidinha de Santa Comba, onde afirmam piedosas legendas ganhara a virgem a palma do martírio. Se os olhos fogem do poente afrontados da multidão de outros cabeços bravos da mesma serra, vão descair consolados ao noroeste no formoso vale do oratório de Nossa Senhora do Monserrate, fundação e antiga acolheita espiritual dos proves ermitães, como lhes chamava a escritura, que esse terreno lhes doou no seculo XV. Mais a longe, inclinando para o norte, alveja a ermida de Nossa Senhora de Guadalupe. Banha pelo nascente os pés ao enramalhetado outeiro do nosso castelo a ribeira de Rio Mourinho, que o divide de Valverde, assento de uns nobres paços dos arcebispos, e de um humilde convento dos capuchos, fundação do cardeal D. Henrique, encolhido em fábrica, grandioso por fama de milagres. E rematam por esta parte o horizonte os gigantes pinheiros de S. Bento, filhos, segundo tradição, d'aqueloutro que, desde os tempos dos mouros, como que já preterido da morte, permaneceu até ao meio do século passado; e logo além dos pinheiros as torres da cidade.
Em uma noute do mês de maio do ano de 1166, perto do castelo, Giraldo estalava uma fogueira; o seu clarão só as estrelas lá por cima o descobriam; tanto era encantado o sítio, e apertado no recôncavo de um labirinto de rochedos, cômoros, e matas silvestres! Cerca da labareda, era alta noite, homens de duro semblante estirados, armas pelos ramos pendentes, cavalos de guerra e azêmalas de carga pascendo. Algumas raparigas aprestam ao lume uma refeição selvática de javali e caça brava, e, enquanto os rouxinóis trinam a espaços pelos cabeços suas namoradas porfias, vão cantando em meia voz xácaras mais de pelejas que de amores; nenhuma roca de linho ou de lã, nem um vagido de criança. Não é uma povoação fixa, parece uma daquelas pequenas sociedades que em nenhuma parte se aparentam com a terra por mútuos benefícios; para quem o mundo não tem norte nem sul, não há no tempo futuros nem passados. Nada de leis humanas é a sua constituição, o desprezo dos perigos a sua providência, e a sua fortuna não aquela que senhoreia e arrasta os sucessos, é n'eles e por eles, transforma as vontades, mas uma fortuna escrava que entre armas se leva à força para onde e por onde se quer. É finalmente uma daquelas cabildas que giram por entre os povos assentes, como os cometas errantes e excêntricos, infecundos e agoureiros, por meio da ordenada família dos planetas e sóis. Nada lhes minguava de quanto requer a primeira natureza; o pão ceifava-lho a espada, sendo o lavrador mouro e o lavrador cristão igualmente seus tributários; água e fogo lhes oferecia a terra; as covas e árvores abrigo e cama; a astúcia ou a força lhes granjeava companheiras e servas; e o castelo, obra bárbara de suas mãos ainda mais bárbaras, lhes segurava um refúgio contra as perseguições. Mil outras ventagens, como frutos de árvore silvestre em tempestade, lhes choviam da lança; e onde quer que acampavam, o terror do seu nome, ainda maior que a sua possança e malefícios, lhes servia de muralhas e baluartes. Seriam felizes se dos vizinhos troncos e penhas houveram nascido, se no peito lhes não morara coração que não caleja, como os ombros e mãos, sob o peso das armas. Mas o aborrimento, enfado e tristeza trasbordava então pelos rostos e esse exprimia pelas posturas e movimento de todos aqueles homens; e posto que esta noute, como outras muitas, só por espancar o tédio com a variedade, houvessem trocado o recinto da fortaleza pelo desagasalho da brenha, a memória e consciência de sua miséria os seguia e estava com eles, e as noturnas carícias da primavera tão malogradas escorriam por seus sentidos, como fala de donzela por um coração desfeito de anos. Por crimes seus se desterraram do seu Portugal, suspiravam pelas casas e famílias que mais não veriam, e onde nem talvez a amizade, o amor, nem o parentesco se atreviam de vergonha a nomeá-los. Eram esforçados como o seu século, e cavaleiros como o seu Rei; e fora das lides do seu século se consumiam em perigos sem glória, enquanto seus irmãos em roda da sina de D. Afonso destruíam os inimigos da fé, se enriqueciam de despojos e fama, firmavam e dilatavam o Estado. O Minho e o Mondego, o Douro e o Lima vinham sussurrar em todos os seus sonhos; e os seus dias se arrastavam eternos pela aspereza das serranias. O ócio, a noite e a solidão são paraíso de anjos para os eremitas que também nesta hora velam na vizinha serra de Ossa; mas para os bandidos de Montemuro o ócio, a que de alguns dias a cá os condena a ausência do seu Capitão, mais lhes é suplício do que folga; a solidão que os cerca lhes representa o desamparo em que se puseram de céu e terra, e a calada da noute deixa ouvir a cada um os rugidos da consciência: carecem do tumulto, do latrocínio, do espetáculo de alheias penas para se aturdir, e anseiam afogar as memórias negras do seu passado seja em que for, embora em novas negruras, em novos sangues, em novas lágrimas.
Que faz Giraldo Giraldes seu chefe que aí os mandou esperar? partiu sozinho e não volta. Por terras do Alentejo andam armas vencedoras de El-Rei; ¿dar-se-á que se lhe fosse arremessar aos pés, suplicar-lhe perdão do crime que, despojando-o da graça e valimento do Monarca e entregando-o às iras da justiça, o forçara de renunciar o reino florescente pelo exílio escabroso entre infiéis, o nome de D. Giraldo Sem-Pavor pelo do salteador Giraldo, a companhia dos heróis pela dos bandidos? Enquanto eles na alta brenha, como abutres em ninho à espera da mãe, se impacientam a aguardá-lo, ¿pactuará ele, em câmbio, da sua vida e fortuna, entregá-los nas mãos de seu comum inimigo? virão já marchando sobre seus vestígios pelas intrincadas sendas da montanha esses destemidos caçadores de homens, que ao primeiro raio da manhã se verão negrejar em coroa densa e movediça por todos os cabeços circunvizinhos? Tais começavam a ser as fantasias, se não as murmurações do bando. Fáceis vêm desconfianças de traição aos que de traição vivem e romperam com todos os deveres de homens; e a distância a que sempre os deteve a alma taciturna do chefe, ainda quando a comunidade de perigos e interesses mais pareciam uni-los, recordando-lhes no meio da presente igualdade as sempre suspeitas e nunca bem esquecidas desigualdades entre o rico Filho d'algo e populares e vilões que todos eram, relaxava já nas vontades o laço da obediência. Eles, que do mais poderoso Rei da cristandade se haviam redimido, como se não indignariam de depender de um igual que, se ainda não atraiçoava, já pelo menos trascurava ignominiosamente os deveres que lhe eles sós impuseram quando com uma palavra lhe conferiram o direito sumo de os capitanear, porque em fim de vassalo perseguido eles o alçaram a Rei de homens livres; foram estas espadas que pendem vilmente à cinta das árvores, as que saudaram cetro a sua lança e converteram os penhascos em trono que ele agora parece desdenhar. Se algum naquela hora houvesse ousado arremessar pelos lábios este pensamento de todos, quebrado era o encantamento, e o império do capitão perdido sem remédio; mas o respeito devido à sua provada mui valentia, o terror que inspirava por uma parte a sua severidade e por outra a grandeza do seu génio, que parecia adivinhar tudo, calcular tudo e tudo vencer, os oprimiam como um fado, e os agrilhoavam a seu pesar no fundo do ermo, como condenados no abismo.
Soa de longe um grito, acode-se em tumulto às armas. Foi o brado de uma das esculcas noturnas, denunciando ter ouvido passos vir subindo contra o arraial; passos de um vulto, que perguntado — Por quem? — não responderam nem se detivera. Acendem archotes, montam a cavalo, vão-se arremessar contra o perigo desconhecido e reforçado pelos fantasmas da noite, com o denodo de quem tomou por vida o barateá-la a todo o lance, e não podendo já aspirar a restituir-lhe a doçura, folga ainda de a sentir pelos grandes abalos — “Cristãos ou mouros, pouco ou inumeráveis, a eles companheiros! há dias que os nossos corvos se não banqueteiam; amanhã quando o sol os acordar festejarão o bom almoço de que lhes haveremos carregado estas encostas.” — E já de espora fita e rédea larga se abalavam, quando da parte d'onde se ouvira o rumor aparece um homem desacompanhado que, levantando a voz os fez a todos parar: era Giraldo. E que outrem houvera ousado ou ousando houvera conseguido dobrar pelas trevas enriçadas veredas daquele labirinto e chegar são e salvo ao arraial dos salteadores? Era Giraldo, que havendo partido armado e cavaleiro, volvia peão com as armas sumidas sob a capa, e por cima dela pendente ao lado uma tiorba, como trovador que de aldeia em aldeia e por alpendres de casais, em horas de sesta e do sol posto vai cantando façanhas, amores e peregrinações de guerreiros em longes terras. Mas o seu rosto nada perdeu do costumado império, um sinal da sua mão desarmada faz que todos se apeiem e esperem em silêncio as suas ordens: breves são elas, porque Giraldo não conversa senão com a sua alma, e as razões dos seus projetos não é jamais ele senão o êxito quem as explica. — “Companheiros, despedir esta noite da montanha e das tristezas; e aparelhar para amanhã me seguirdes!” — Ditas estas palavras, subiu ligeiramente ao castelo, e se recolheu sozinho no seu silvestre palácio que uma cama de feno enchia todo, que nenhuma porta defendia, e em cujo teto, antes de se deitar, devassou com a mão uma larga fresta, ou para que fosse a arvorada quem o acordasse para um dia enfim de felicidade, ou para considerar pela derradeira vez as estrelas da sua serra, as confidentes únicas de suas noites afanosas, as celestes influidoras de seu projeto heroico. Dentro em pouco os lumes uns após outros se extinguiram, todas as vozes emudeceram, e ao ténue ruido do orvalho sereno pelas folhas mil sonhos contraditórios de peleja e delícias volteavam pelo profundo sono do campo.
II. Fora, e não longe dos muros da mourisca Évora, contra o noroeste, no cume de outro vistoso outeiro que chamam de S. Bento, avultava uma torre alta, redonda, de grossa cantaria, sem porta nem entrada por parte alguma. O passado século na sua infância ainda a saudou inteira; o presente já a herdou destroncada, senhoreando ainda, todavia a cerca das vizinhas religiosas a cavaleiro do seu muro elevado; o século que vier não herdará nem alicerces. Com a solidez, com a figura e com o fechado imaginara o arquiteto árabe fadar-lhe inviolabilidade e eternidade; e de todas essas pedras que amontoou só um resto coberto de ervas sinalará ainda alguns dias o sítio; o mais se transformou pelas encostas em moinhos, que volteando ufanamente as suas grandes velas brancas, e cantando ao som do trabalho, parecem uns contra outros escarnecer do decrépito avarento de quem repartiram os bens para os desfrutar. Por aquela só parte se podia a cidade moura temer de algum súbito acometimento, que por todas as outras dominava alta e desafrontadamente, como inda agora um estendal mui chão e patente de planícies. À diurna e noturna vigilância da torre estava, pois, confiada a segurança da primogénita e princesa da província Transtagana.
Dentro n'esta torre reside um valente mouro com uma filha moça e formosa. Desterrados voluntários do comércio dos seus, anos há que cifram o mundo em tão estreito espaço. Por prémio do muito que em sua mocidade servira com as armas, pediu ele a honra de ser, enquanto vivesse, a vela e providência da cidade onde nascera; e esta honra fora facilmente concedida à sua mais que provada lealdade. O pai que já nada para si ambicionava, afora o ver crescer em seguro as graças da filha, e a filha que não imaginava ainda outra felicidade além da que possuía com seu pai, habitando assim um com o outro tão fora e tão por cima das muradas humanas, como que tinham contraído uma natureza mais sublime.
Limitadas em número as suas afeições, as pouquíssimas que ainda lhes restavam haviam adquirido uma força invencível, e ao mesmo tempo uma pureza, uma luz e uma serenidade, que da maior vizinhança do céu pareciam filtradas. O amor da terra natal e da religião de seus maiores eram as principais d'estas paixões: as gloriosas histórias e o alcorão, o recordar, o orar e o esperar as suas perenes ocupações naquele ermo aéreo. Sussurrava a cidade como um enxame confuso que só negoceia o viver, enquanto eles, como duas aves no cume de uma árvore inacessível, viviam mais do que a vida, viviam suas fantasias, viviam harmonia e paz, viviam coração e viviam alma, que é de todos os viveres o mais chegado a Paraíso e o mais para invejas, se de fora o entendessem. Ao seu amor de pátria nada igualava a não ser o seu ódio a cristãos. Com o longo descostume do verdadeiro mundo, a imagem de seus conterrâneos, despindo-se insensivelmente de quanto no comércio dos homens produz tédios, cansaço e aversão, purificada, perfumada pela saudade, divinizada pela religião, facilmente se lhes convertera em ídolo dourado, enflorado, digno de todos os sacrifícios. Cousa é a pátria que mais e melhor se ama ao longe do que ao perto, suspirada do que lograda; a ideia, porém, dos cristãos portugueses pelo contrário se carregara e denegrira; a memória e a fantasia desocupadas, exagerando-a à porfia com quanto podiam, a haviam transtornado n'uma ideia completamente monstruosa e infernal. Não havia crimes possíveis que nos inimigos os não supusessem, como nem virtudes e excelências que não figurassem nos seus. N'estas convicções os confirmava a solidão: dos opostos afetos que delas nasciam os repassava cada vez mais a própria vista de cada pedra do edifício, cuja alma eram, documento e monumento da irreconciliável inimizade dos dous povos.
À seguinte noute após aquela em que Giraldo se recolhera a Montemuro, finda a derradeira refeição e oração, “Filha, disse o velho à virgem, agora mais que nunca importa velar. Grande é Allah de quem mana toda a virtude; com tantos olhos da alma havemos de observar todo o arredor, quantas são as estrelas que espreitam do alto o segredo das terras. O cavaleiro que ontem vimos passar para a cidade, ao entrar e ao sair deteve-se a considerar a torre; cristão era, raça condenada, sem fé nem verdade; e o que passou com o alcaide bem mo ouviste ler nesta carta que o mesmo alcaide nos enviou com o último mantimento que içámos à torre. — Não há Deus senão Deus e Mafoma é o seu Profeta; sabei vós outros, atalaias da torre posta à cabeceira da cidade como mãe que não dorme ao pé do berço do filho primeiro, sabei como é vindo a nós um Nazareno por nome Girald ben Girald, e por apelido Sem-Pavor, Capitão dos ladrões acastelados na montanha, que tantas vezes fazem entradas por terras, assim de mouros como de cristãos, com os quais ladrões (que Deus confunda) trazemos nós pazes, até que possamos de súbito um dia colhê-los na rede da nossa vingança. Sabendo ele como o tirano de Coimbra ben Enrik, dispôs submeter a seu jugo esta nossa província, e entendendo que igual perigo como a nós o ameaçava a ele e aos seus, gente criminosa, fugida à justiça da terra do seu nascimento, a nós por divina mercê alcaide de Évora nos propôs a unir as suas armas com as nossas, para comum defensão e complemento de vingança estrondosa, que por muitas e graves ofensas jurara em sua alma sacar do tirano. Duvidamos nós de sua fé, porque se por uma parte é revel, perseguido e desterrado, por outra o consideramos nobre, cavaleiro e saudoso da pátria, e primeiro foi nosso adversário que seu ofendido; todavia trocámos com ele a requerida promessa de mútuos auxílios. Pelo que agora vos recomendamos sete vezes, e novamente vos tomamos juramento pelas asas escuras do anjo da morte, e vos emprazamos para a ponte delgada do oceano de fogo, no dia da conta, em que todo este povo se vós o traísseis iria vozeando pender-se da orla da vossa alquicé, e precipitar-vos de chofre no golfo das chamas, que veleis dia e noite e nos deis rebate de qualquer novidade sentida de longe.» – «Meu pai (interrompeu a virgem, fechando-lhe nas mãos a carta, e tomando-a por cima da cabeça) sobre mim caia todo o sangue da nossa cidade, e à hora da morte me enlutem a alma com as águas do infame batismo, se jamais por nosso descuido entrar a ruína aos vitoriosos filhos do Profeta. Minha é esta noite, que ma prometestes; ide-vos a descansar, e sonhai felicidades, que eu as gozarei ainda maiores, mantendo sozinha no meio do enlevo das trevas caladas os altos destinos da nossa cidade.”
Só está a formosa moura de pé ao umbral da ventana, bebendo por olhos e ouvidos a escuridão e silêncio dos campos. O sono que ela havia de dormir dorme-lho a cidade, e o santo orgulho que por isso lhe alvorata o peito, quase tão docemente a dessossega como a outras as amorosas fantasias de sua idade. Virgem até no coração, até no pensamento, se alguma cousa invejasse mais, seria só a glória de vestir armas e de pelejar contra cristãos, como já outras muitas de seu país, celebrados nos cantos dos poetas. A alma do pai se infundiu na sua; o seu seio só palpita com as relações das pelejas; o seu olhar só se inflama vendo passar por longe algum cristão, e nesses momentos dera ela todos os palácios de safiras dos contos orientais, todas as músicas e aromas das sultanas de Córdova, por ter o olhar do basilisco. Todas as suas súplicas ao profeta imploram a peste e a destruição sobre o nascente reino dos descrentes portugueses. Nos êxtases do seu zelo religioso cuida até que presenciaria com delícias a tomada, o extermínio, e incêndio de uma dessas cidades infiéis; as mães arrastadas pelos cabelos nos regatos de sangue, os filhos longe delas, esmagados sob os pés tumultuosos dos cavalos; os soldados da cruz trazidos em cadeias para virem em lugar dos brutos puxar nos longos dias de verão as gemedoras nós nas hortas e pomares dos arrabaldes. E, todavia, não é ela cruel; mas a piedade para com o pai, único ente vivo do seu mundo, e para com a pátria de que ele a nomeia anjo, lhe dá toda a crueza; o fanatismo fortificado pela solidão ocupa todo o lugar que fora dali sentimentos mais doces e humanos haveriam senhoreado. Oh! quem assim odeia os inimigos d'uma pátria que não desfruta, que não fizera amando! olhos que assim se deleitam em perder-se pelos ermos da noite ao pé de um velho adormecido, que não exprimiriam em mais doces vigílias! Mas essas vigílias que aí vão por baixo de tantos tetos, não as inveja ela, que as não conhece; do amor nada tem ouvido mais que o canto d'alguma avezinha que no meio do voo para a descansar no cimo da torre; dos prazeres só sabe o verdejar dos montes apartados; da primavera, dessa quadra tão irmã e tão uma com os seus anos viçosos, e só as virações que vêm como por dó, contender com alguma florinha que, nascida entre as pedras do edifício, desabrocha como ela em desterro, e desenvolve formusura nem dela própria conhecida.
Mas na véspera por junto da torre passou um peregrino, e sentando-se defronte a descansar à vasta sombra fresca e rumorosa do grande pinheiro, cantou ao som de tiorba um romance, cujos sons e palavras lhe desceram suavemente ao fundo da alma e lh'a trazem desde essa hora enlevada.

Viva Allah; foi meu padre um bom mouro,

Moura madre me deu de mamar.
Moura fada fadou-me um tesouro,
Moura virgem mo tem de entregar.

Honra a Allah que o provir nos decreta,

Quando os olhos abrimos à luz!
Tu és glória aos fiéis do profeta,
Eu horror aos de Afonso e da Cruz.

Manda Allah que eu te colha aos meus laços,

Fénix rara, em tão próprio jardim.
E que só ao sentir-se em meus braços,
Virgem moura, os meus males deem fim.

Voto a Allah, meu laude cansado,

Se consigo esta flor das huris,
Que hás de em Meca pender marchetado
D’ouro e pérolas, de prata e rubis.

Allah bom, Allah forte, Allah grande,

Lá do sétimo céu me ouça já;
Um pelo outro a descanso nos mande
Cedo, ó Virgem mimosa d’Allah.

E ditas estas trovas se partira, voltando-se muitas vezes para a torre e ventana onde ela ficava. Desde então mais o não havia avistado senão por sonhos. Nos poucos momentos que dormira representava-se vê-lo, sem saber como, entrar na torre, e tomá-la em braços; e sempre naquele ponto o tumulto do coração e um terror involuntário a despertara sobressaltada. Nada ousara confiar ao pai nem quási a si própria de tão estranhos desvarios; mas criada com as superstições mouras, costumada ao alcorão, onde sonhadas vêm as profecias, mulher, moça, donzela, e imaginária como quem por falta de universo revolvia do contínuo do seu interior, debalde procurava dar de mão a um pressentimento confuso d'algum grande lance que a aguardava com aquele desconhecido. Pela primeira vez agora sente estreita a sua prisão, e segue com a vista as nuvens que se desvairam pelos ares livres. A expressão do rosto atento do peregrino não a entendera ela; feição por feição a está recordando, procura por algum modo traduzi-la ou rastrear-lhe sequer o sentido; mas o bem-querer que os versos expressavam e pediam não se lhe figurava que morasse no mesmo coração d'onde eles pareciam rebentar. O olhar poderoso daquele mouro a fascinara apossando-se de todo o seu destino; em qualquer parte não sabida para onde os passos o levaram, onde quer que dorme ou vigia ausente, ela está junta dele, ajoelhada como escrava aos pés do senhor ofendido. Se ele volvesse nesta hora a assentar-se na mesma pedra, pressenti-lo-ia de longe, conhecê-lo-ia na escuridão, e teme até que, atraída por esses dois olhos resplandecentes nas trevas como duas estrelas, absorta e arrebatada como a ave que de ramo em ramo se despenha na boca da serpente, deixaria a alampada só velar na torre junto ao pai adormecido, e desdobrando a escada levadiça aos sons do alaúde, desceria saltando atropeladamente a encontrá-lo, e cravar-lhe um ferro nas entranhas para revoar à torre, acordar o velho, refugiar-se-lhe no peito, e dizer-lhe ao ouvido: “Salvei-te a tua filha: defende-me, esconde-me, que trago as mãos ensanguentadas.”

Aqui, correndo a espertar a luz que, ainda mais cansada de velar do que ela, já começava a ondear sombras perturbadas no aposento, foi junto ao leito procurar no rosto sereno e forte do ancião adormecido mudas inspirações da paz e valor que lhe faleciam. Depois sorrindo de si mesma, embaraçou o escudo, empunhou e meneou convulsamente a lança, e repondo novamente lança e escudo, e chamando-se louca, voltou para a ventana a desempenhar-se de sua penosa tarefa. Nenhuma luz surdia lá das janelas de Évora, nem dos casais pelos montes ao longe; já os galos responderam ao canto da meia noute que entoa o galo invisível e celeste do Profeta. O insensível lentor da noite, o rumorejar monótono das folhagens com o frouxo meneio das virações relaxam pouco e pouco asas ao alvorotado da solitária. No rebate da janela se reclina contra o campo confiado à sua vigilância, com a face sobre o braço curvado a outra mão cerrada ao peito, e os olhos nas estrelas por onde, como por umas serranias de diamantes, faz subir suas orações cândidas ao trono de Allah; até que o cansaço, o silêncio, a hora e o seu destino lhe fecharam os olhos; sono profundo a afogou, e sobre a grande cidade só ficou vigiando, como sobre um mausóleo desamparado, a chama incerta d'uma desamparada alampada.
Enquanto sonhos talvez de antigos combates, talvez das glórias do maomético paraíso, enfeitiçavam o descanso do mouro, era o culpável sono da virgem imprudente atravessado de visões, carrancudas como fantasmas, pesadas e frias como a morte. Disséreis que as nuvens, que volteavam cada vez mais densas pela face das estrelas, e atormentadas do vento, se transtornavam à porfia em mil formas agoureiras e monstruosas, pelas pálpebras transparentes lhe estavam coando para os recôncavos da alma as suas sombras, e que as ideias esvoaçando soltas do jugo da razão se infundiam nelas, ou as trajavam para a atormentar com uma cena fantástica de inferno. Eram sono e sentidos horrendamente misturados; era aquele estado, que ainda ninguém, mormente pela noite das grandes paixões, deixou de experimentar, em que a mentira e a verdade, o interior e o exterior, o real, o possível e o impossível se conspiram para nos desatinar. Todos seus membros estremeciam, grandes gotas geladas lhe escorriam da fronte, o peito arquejando ansiava sacudir de sobre si a mão dormente que o esmagava com um peso igual ao do mundo. A voz procurava, sem encontrar, uma fuga por entre os lábios convulsos até ao ouvido paterno, e a cabeça desesperando-se imovelmente por se agitar, anelava ferir-se contra a pedra e sacudir n'um grito o torpor em que se sentia finar. Os esforços da vida contra a morte começavam enfim a prevalecer; já sopesava o braço; já despregava e erguia o rosto; já se descerravam os olhos; quando entre as visões do ânimo não bem apagadas, e o aspeto do céu carrancudo, creu ver, viu, vir surgindo fora da torre e cosida com ela um braço nu e forçoso, uma fronte larga e requeimada, uns olhos reluzentes, um semblante como o que em sonhos a perseguiu. Ainda mais aterrada com esta aparição aérea, a qual sem asas e suspensa do vácuo, a comtempla absorta com os olhos quase pregados sobre os seus, e agitando-lhe já os cabelos com a respiração afanosa, retrair-se foi o seu primeiro instinto; mas o braço, como garra de leão a aferrou súbito; o segundo ímpeto precipitar-se; aguentou-a o próprio peito de que fugia. Nesse instante a desesperação lhe restituiu o que o pavor lhe havia roubado; com forças maiores que do seu sexo, e proporcionadas a um lance tão apressado, fechando os olhos por não ver o seu inimigo, se travou estreitamente com ele arca por arca, e se empenhou entre os dois uma luta mortal de que eram arena uma estreita lájea e o ar profundo, e uma luzerna agonizante o único espectador. O seio nu e melindroso da virgem tressua contra um peito cerdoso, fornido, armado de cicatrizes; a face tenra se magoa nos tufos de umas barbas hirtas; um ombro requeimado repele um ombro de marfim; só são iguais os dois corações que um a outro se sentem bater atropelados e que o mesmo fogo tem abrasado das mesmas fúrias. O mais profundo silêncio envolve este tenebroso combate. Prova cada um o extremo das forças que a posição agra e temerária lhe consente empregar, e parecem imóveis por algum tempo como duas estátuas abraçadas. Em qualquer outra parte o varão logo ao primeiro encontro houvera roto o equilíbrio de contenda, ou antes, o cavaleiro costumado a guerrear cavaleiros, desdenhará vitórias tais d'uma donzela, mas aqui a desvantagem da sua posição contrabalançava imensamente a melhoria do sexo; uma cunha mal entalada entre as juntas externas da cantaria da torre, era o único pedestal que o sustinha sobre um abismo; com um só dos pés descalços se aferrava a ela, com o outro procurava, palpando na parede lisa, uma pedra ressaída, uma falha, uma ervinha. Com um só dos cotovelos se chumbava ao rebate da tão defendida e porfiada fresta; a cada esforço para alçar sentia gemer a cunha, curvar-se, e lascas de caliça cair ressaltando ao longo da parede até ao alicerce. A moura, com o meio corpo debruçado sobre o seu, temendo menos despenhar-se com ele do que vê-lo entrar consigo, lhe aumentava o peso, lhe encobria a passagem, e arrimando no ir e vir da luta, as espaldas ora a um ora a outro umbral, lha trancava; e com a face lhe vendava os olhos, com os dentes procurava devorar-lhos. Oh se ele pudesse alcançar à mão a espada que se lhe balança e tine ao lado, a desesperação o fizera talvez cometer uma vilania! Cresce e reveza-se de um a outro a incerteza do êxito; ora pendem balançados para o campo ora para o aposento, como dois arbustos unidos que um redemoinho embalouça na alta ameia d'um castelo derrocado: Nenhuma ou uma só destas cabeças saudará o novo dia, e qualquer que sucumba, grandes e alheios fados afundará consigo! Tal certeza lhes redobra de contínuo as forças.
A muçulmana começa a animar-se pelo seu longo resistir, rouqueja surdamente o nome do pai e o de Allah, solta-se do contendor, retrai-se; como vaivém sacudido contra muralha, volta logo com todo o peso a embater naquela massa que já sente vacilante e que não compreende como tanto haja podido suster-se sem alicerce no meio dos ares. Ao mal esperado encontro, estremece o valoroso; o seu peito que já se debruçava para galgar, se despega do amparo da pedra; com a direita estendida procura desacordadamente onde se apegue e não atina; vai precipitar-se… quando por um arrojo temerário, enovelando todas as forças no interior, repulsando com o pé a já quási inútil cunha que lho sustentou e estala, pula, retoma com um braço a janela, com o outro colhe pelo colo a destemida que já voltava a segundar o tiro; aperta-lho como em uma tenaz, sacode-a duas, três, quatro vezes como um gigante que procurasse desentalar um dragão d'entre penedos; pouco a pouco a curva, a debruça, já os olhos da sua preza não podem ver o céu, nem a luz da torre, mas só o anoutecido fundo do precipício. Por um momento pendeu aquele corpo librado entre a vida e a morte; um leve e derradeiro toque rompeu o equilíbrio, revoluteou sobre si mesma! Os ecos vizinhos não ouviram mais do que um gemido curto e estranho, um fracassar sucessivo de cunhas, e logo um baque soturno que não souberam repetir; e tudo recaiu no silêncio. Às trevas agradece o vencedor o encobrimento de tal vitória, e só lhe pede assaz espaço para lavar em correntes de mais digno sangue esta última sobre já tantas outras nódoas do seu nome. Com a espada apertada no punho, entra senhorilmente pela torre; mas a luz, como que fiel às mãos que a acenderam e a que sobreviveu, longe de lhe facilitar o conhecimento do recinto, lho turva de repentinas sombras, revolvendo-se entre as vascas do apagar-se. A um de seus clarões instantâneos, percebe ainda intacto o facho com que nos perigos da noite era dever da atalaia fazer sinais e almenaras do alto da torre, e pelos movimentos e direção da chama indicar às vigias internas da cidade a que parte, com que forças, e porque modo importava acudir. Acende-o, dá com o mouro adormecido. “Torre maldita, exclama, não terás para oferecer a um braço cavaleiro senão infâmias?” Viu armas; considerou um pouco se o acordaria, mas refletindo que um só adversário mal valia o tempo tão apertado e precioso que despenderia a esperá-lo, de um golpe lhe fez saltar a cabeça. Corre com a luz exploradora a todas as partes, e certo de que ninguém vive no edifício, desenrola a escada levadiça, crava na ponta da espada, sem a olhar, a cabeça defunta, desce velozmente. Ao pousar pés em terra, é um cadáver o primeiro objeto em que topa! Afirma-se, reconhece a moura que dorme n'um banho de sangue o seu sono último; deu-lhe um suspiro. “Tão moça, formosa, e sem culpa!... oh gloria!... oh pátria! quanto muitas vezes custais caro!” Foi um raio de piedade que rompeu por entre as nuvens tormentosas do pensamento até à flor do coração do guerreiro, e antes de lho haver podido aquecer, se esvaiu. Se há horas bem-aventuradas que não admitem penas, outras há tão negras que nenhum reflexo benigno as pode matizar. Todo abrasado na sede de um futuro para o qual tão largos passos deu já por uma vereda de covardias, nada pode haver nesta noute que o detenha. Com o gume que destroncou a cabeça do pai, decepa a da filha; a mesma espada embebe duas vezes o mesmo sangue, e as duas almas naquele momento reunindo-se por ventura para deixarem juntas o mundo, ou para ficarem girando em redor da sua torre que não puderam salvar, folgariam de ver na inimiga mão reunir-se ainda uma vez aqueles rostos que só um ao outro se olharam tantos anos, que exprimiram sempre os mesmos pensamentos e as mesmas vontades.
Assim descia Giraldo seminu, qual havia trepado à torre, pela encosta do silencioso outeiro: sob as suas sapatas ferradas, que junto aos alicerces recalçara, ressoa o caminho, que a largas passadas o despede. O tinir da espada o importuna como um escárnio; carregada e feia vai a sua alma como um espelho da noute; n'uma e n'outra só uma estrelinha incerta reluz ao longe. O vento que doudejando por entre os ramos não vistos, tantas vozes humanas arremeda a ouvidos perturbados, de quando em quando, o força a deter-se para escutar. N'um d'estes momentos figurou-se-lhe ouvir já as falas de sua gente, a quem intimara o mais profundo silêncio, e estremeceu e corou pensando nos despojos que de sua vitória lhes trazia. Esteve para os arremessar; mas alçando na mão e encarando pela primeira vez aquelas duas cabeças juntas, lhes sorriu, um sorriso triste, que dizia: “Porquê? não eram as vossas mortes necessárias condições para uma grande façanha e uma felicidade ainda maior? Oh que vos invejara eu, se não fora este meu sonho do porvir! Na pátria morrestes e pela pátria; morrestes puro e sem remorsos; morrestes onde amastes e com quem amastes. As piores amarguras da hora suprema, nenhum de vós as tragou, nem os terrores do expirar, nem as saudades do mundo, nem a pena de testar lágrimas a quem só se desejaram alegrias. Tu findastes dormindo, tu combatendo e esperando; ambos perto, nenhum aos olhos do outro. E agora, enquanto eu, vivo e vencedor, não tenho um rosto de mãe, de filha, ou de amigo onde encoste esta cabeça condenada, esta face enrugada antes da velhice, estes lábios desafeitos de branduras, os vossos rostos se tocam, e o mesmo vento desabrido parece estar folgando de vos emprestar uma sombra de vida e amor, quando entre mescla molemente as ondas negras d'estas madeixas com a prateada espessura d'estas barbas. Se alguma cousa sensitiva permanece em quem viveu, dos três que descemos da torre não sois vós, não, os mais mal a fortunados!”
Entretanto emboscado em um souto, nas fraldas do outeiro, os bandidos de Montemuro esperavam e desesperavam. Para que fim desampararam o seu castelo da serra? ¿Porque se lhes mandou que trouxessem, além das armas bem aparelhadas para ferir, uma multidão de paus curtos e delgados, indignos de suas mãos, incapazes até para pelejas de mininos? e porque razão despartindo-se deles, antes da meia noute, se despojou o capitão da mor parte de suas roupas, se enfeixou em ramas verdes, levando além da espada e de uma lança altíssima, alguns d'aqueles mesmos paus, constante assumpto de seus motejos? Saudades teimosas da pátria, asperezas de vida, e penas sem desafogo nem esperança, ¿transtornar-lhe-iam a cabo o juízo, e estarão eles, eles terror forte do Alentejo, eles javalis de Montemuro, representando sem o cuidar um arremedilho ridículo de um comediante? No meio deste cuidado geral cochichando e papeando todos em meias vozes, soa de repente uma que os emudece. “Valorosos, exclama Giraldo, minha é a torre da atalaia; eis-aqui os que a mantinham! Minha e vossa será, portanto Évora ainda esta noute, e amanhã teremos um presente de Rei para oferecer a D. Afonso em troco de nos restituir, como espero, a pátria. É o derradeiro empenho em que vos meto; havei-vos nele como nos demais, e fiai o restante da fortuna, coroadora certa dos arrojos magnânimos. Pelo que já me há servido, julgai se podemos ou não confiar nela. Enquanto me vós suspeitáveis ou traidor, ou inconstante, ou cansado, preparava eu só comigo os meios para a redempção de nós todos, sem que nem vós, nem os inimigos me adivinhassem. Enganando, sob color de fingido interesse, o alcaide nosso falso amigo, visitei e estudei a cidade, suas entradas, saídas, forças e indústrias defensivas. Disfarçado em peregrino, sentado ontem em face da torre que me importava reconhecer, com um cantar mouro ao som d'alaúde atraí à janela os guardas para ver ao sol os adversários que nas trevas havia de destruir; e enquanto me eles contemplavam do seu asilo inacessível, debuxava eu na memória as juntas das pedras que me haviam de servir de escada. Tudo saiu como o eu traçara. O escuro dos ramos de que ainda agora me vesti, ajudado do negrume dos ares, me consentiu volver lá sem ser notado; junto ao pinheiro aguardei se adormeceria a vela; mal a cri dormida, socorrido das cunhas, e fazendo firma na lança, subi, e vo-lo repito, estou senhor daquela verdadeira chave da cidade, com a qual juro abrir-vo-la antes de uma hora. Se alguém há que tema entrá-la comigo, que fique, e no seguro destas moutas ouvirá de longe o alarido a nossa vitória; e se até os ecos de guerra o assustam, parta, que todos nós lhe abriremos caminho; parta, e vá-se acolher a Montemuro entre as mulheres.” — Todos eles levantaram as vozes e as armas jurando segui-lo; poucos minutos após, só havia entre aquelas árvores duas cabeças mortas que pareciam surgidas de sob a terra, para escutar ao longe o estertor de uma cidade. Os cavalos corriam à rédea larga para um posto assinalado, e o mais da gente, semelhante a uma nuvem densa, que sem ruido aloja em si o temporal e o leva às cegas por onde e para onde apraz ao vento, ascendia rápida e silenciosamente com o Capitão pelo caminho da torre, contra as muralhas de Évora.
III. Um edifício sobrepuja dentro na cidade a todos os tetos, calado como toda ela, mas não como ela adormecido; é um como ouvido e olho que o grande corpo do povo tem sempre de fora da coberta do seu leito enquanto descansa. Às esculcas desta segunda torre toca explorar a larga campanha de que a povoação se rodeia, receber da torre externa no outeiro de noroeste os sinais de acometimento por aquela parte, e havida certeza ou receio de novidade, dar rebate aos moradores. Eis que lá de cima a sentinela do quarto da modorra vê arvorar-se inesperadamente um facho na coroa da torre redonda! Sobressaltada com o despontar de tão mal agourado cometa, não tarda em lhe responder com outra igual chama que “alerta está, que ainda, porém não alcança pela calada da noute rumor algum, nem atina para que sítio importe dar repique aos homens de armas.” Giraldo (ele era) tão encantado com o lume do mouro quanto o mouro assombrado com o seu, lhe significa por novos e sucessivos sinais, “haver passado inimigo que lá se vai correndo para os plainos, fora das portas do nascente.” Neste momento, a uma bafagem que soprou daquela parte, ouviu a sentinela claramente um frémito de cavalos e armas vir recrescendo contra o muro. Para acudir à trombeta de rebate largou o facho, o qual Giraldo vendo cair para fora ao longo da torre, que branquejava e se escurecia sucessivamente, disse, arremessando o seu a larga distância: “Assaz conversaram guerra as torres com suas línguas de fogo; agora a nós pertence, a nós varões fazê-la e acabá-la com braços de ferro. Avante! caída é a estrela de Évora, e sumido para sempre, como raio, o nosso infortúnio!”
Aos arrastados rugidos da trombeta, seguiu a voz estrondosa da atalaia, clamando sem cessar alarma, alarma, e denunciando a porta e lanço do muro para onde urge confluir os socorros. De instante a instante clareia o tropear da cavalaria; a trombeta e o pregão da vigia se revezam com mor fúria, ecoando pelas ruas ermas e tenebrosas. Por baixo dos tetos já lavra um rumor confuso, já vultos alvos vêm assomando pelos eirados; já aqui e acolá se descerram portas e estampam nas frontarias opostas uns movediços painéis de luz, onde desaparecem e reaparecem tecendo-se e correndo confusas figuras de terror, homens que se vestem arrebatadamente, mulheres que lhes trazem alfanges e broqueis. Já os tambores surdem, e discorrem tumultuariamente todos os caminhos; o fragor de um rufo geral inunda e estremece a cidade até às íntimas partículas dos edifícios e dos homens, como uma fervura em cachão atormenta o vaso e revolve quanto nele se encerra; e por entre este som grande, poderoso, escuro, atravessam solitários os gritos e gemidos dos clarins, como os corvos de tempestade pela amplidão da tempestade. Agitadora de perigos é a noute; lembram-se de D. Afonso e da miserável tragédia de Santarém. Uns se armam e correm oferecidos a toda a fortuna; outros se detêm assombrados em suas pousadas, incertos se mais convém morrer defendendo-as de dentro, se desempará-las pela salvação comum; e ao mesmo tempo que os vizinhos inquirem aos vizinhos e aos desconhecidos que passam, sobre o que ninguém conhece, e os transes do coração se trocam nas falas em mal fingidas afoutezas, o Alcaide com um bom número que já chegou a congregar de pelejadores resolutos, espera em cima do muro e com o ouvido atento a tornada dos exploradores que pelo campo enviara a descobrimento. “Cavaleiros cristãos, cavaleiros cristãos, (gritam estes, recolhendo-se turvadamente ao meio dos seus) cavaleiros cristãos! que se não saís apercebidos a rechaçá-los, não tardarão que nos cometam, tanta é a soberba de suas vozes e feros, e a arrogância do seu campear, certo maiores do que se havia de esperar de tão pequena cópia de gente! Saí logo, saí os que já sois prestes, que vos fiamos havereis deles bom barato.” Com tanta fúria foram estas palavras ouvidas, que toda a companhia com grito de Allah, aberta a porta, se arremessou em torrente ao campo e se foram de tropel contra os mal-estreados quebrantadores de seu sono. Giraldo, que por este ensejo anelava escondido não longe com a sua turba, como sentiu assaz desviado o tumulto, investe com a porta ainda patente, qual, ou de confiados ou, o que é mais para crer, de atónitos, a conservavam os porteiros e guardas dela; estes, cegos do escuro e confusos com a revolta, só reconheceram pelas obras a quem vinha entrando, e quando já não havia resguardarem-se; porque, recebendo em câmbio das perguntas com que festejavam o vitorioso regresso dos seus, resposta de botes, talhes e revezes, logo ali se desampararam das vidas. Entrados os cristãos e deixado aquele passo a bom recado à conta do golpe de inimigos que andava fora, se espalharam pelas ruas com grandes vozes de “Vitória, Portugal e S. Thiago!” e acutilando quantos mouros armados lhes ocorriam. Então o conhecimento claro do mal presente restituiu aos moradores a resolução que os anúncios de um perigo não sabido lhes tivera embargada. Também isto o previra Giraldo, e para acautelar que nessa hora se não viesse a perder o valor afogado da multidão, e desejoso de acabar este feito o menos enxovalhado, que ser pudesse, de sangue até de infiéis, é que fizera trazer aquelas estacas que a sua gente agora ia atravessando pelas argolas de todas as portas, a fim de salvar pela prisão as vidas dos que ainda se não tivessem lançado perdê-las. Continuava, não obstante, por toda a parte, antes crescia o reboliço. Ao estrepito das armas, gritos e gemidos dos moribundos e precipitadas carreiras de perseguidos e perseguidores, se acendiam pelas casas os choros e clamores feminis; pelos minaretes o rebate; pelos eirados a raiva que de tudo fazia armas, e as chovia ruidosamente sobre os adversários de envolta com as maldições e impropérios. Os melhores dos mouros que fora andavam a braços com os cavaleiros da trilha, pouco tardou que pelo ressoar da cidade caíssem na conta do que podia aquilo ser, e entendessem quanto importava acudir, se ainda fosse tempo, ao centro e soma de todos seus interesses; pelo que pelejando e refugindo, se vieram outra vez caminho da porta. Chegados a ela, e quando esperavam que para recebê-los se abriria, a viram escancarar-se para vomitar um bando de espadas que tempestuosamente os tomaram pelos rostos, enquanto os de cavalo os alanceavam pelas espaldas. Aqui foi o desmaiarem totalmente os corações: arremessam as armas os que sobrevivem, e por cima dos corpos dos feridos e mortos, por entre os cavalos e os golpes, o alarido e as trevas, se dispersam voando e desaparecem, mais acossados do pavor que do perigo, por que os cristãos desprezando segui-los por acudir ao ruido dos muros adentro, se deram toda a pressa de entrar; e reposta em bom seguro a porta, se derramaram pelas ruas a ajudar os companheiros assim com as obras como com as novas do desbarate já feito.
Como esclareceu a manhã, sentindo Giraldo quietada com o terror toda a cidade por jazerem mortos, ou andarem fugidos os mais valentes de seus filhos, e não poderem nem ousarem os outros sair-se das casas, ordenou que na mortandade se pusesse ponto, contentando-se os vencedores por direito de guerra e em paga da perdida noite, com o saque geral da povoação tão rica e tão a súbitas apanhada. Assim se viram de repente os foragidos de Montemuro senhores de uma capital, servidos de escravos e escravas, abastados de tudo, até de fama para entre cristãos e infiéis. Duas sós cousas lhes faleciam, a honra de outrora, e a faculdade de rever a pátria. Ambas essas maravilhas se cifravam na graça de El-Rei; nem sequer ousavam desejá-las. Porém Giraldo, sua antiga Providência, inda os não desamparou. Assim como houve a cidade às mãos despachou embaixador a D. Afonso, encarregado de lhe pôr aos pés as chaves dela, e a espada que a ganhara, com uma carta mui bem concertada de termos de lealdade, na qual lhe pedia fosse servido mandar logo tomar conta daquela pequena menagem, qual para ele e para a fé a haviam gostosamente granjeado os sem ventura não há muito seus filhos, e ainda agora e sempre seus soldados e servidores; que eles aí lh'a ficavam guardando, prestes a entregar-se-lhe com ela, e receber sem queixume da mão de seu Senhor e Rei o perdão ou castigo com que alfim lhe prouvesse aliviá-los de seu longo desterro.
Cheio estava ainda o príncipe, quando a embaixada lhe chegou, do contentamento que recentes vitórias suas lhe influíram: Sesimbra tomada, El-Rei de Badajoz com soberba cópia de gente destruído, a formidável Palmela, ao simples som das nossas trombetas, como Jericho humilhada e entregue, outras muitas entradas felicíssimas por terras de mouros transtaganos! Acresciam-lhe ao contentamento as esperanças dos novos louros que já traçava colher de Moura, de Serpa, de Alconchel, de Coruche e de Elvas, que esse mesmo ano de 1166 lhe veio a entregar. Acolheu com boa sombra o mensageiro; e dando a Deus muitas graças por até em criminosos florir a heroicidade portuguesa, o tornou logo a despedir com as chaves da cidade, a espada que a ganhara, e letras cerradas de resposta para o Capitão D. Giraldo, pelas quais o nomeava seu vassalo e Alcaide perpétuo da sua cidade de Évora, com o perdão, honras, e mercê da fazenda ganha, a todos e cada um de seus valorosos sequazes.
Assim veio a poder de cristãos, para nunca mais sair dele, esta formosa cidade, já insigne de tempos antiquíssimos; — enquanto Lusitana, resistidora das legiões do Tibre, e amada de Sertório, de cuja mão recebeu parte das joias que ainda hoje alardeia, o seu colar de muralhas, e o seu aqueduto da água da prata; — Romana, tão mimosa de Júlio Cesar, tão enriquecida por ele de foros e privilégios, que Liberalidade Júlia foi o seu nome; e tão bem olhada do céu, que nascido o sol da fé, madrugou com as primeiras a recebê-lo, e a quási todas se antecipou nos triunfos do martírio. Rebatizada, depois de quatro séculos de árabe, reassume o báculo pontifical, que já por outros três séculos empunhara quando Goda, e com ele alçado por cima dos outros da província, para sempre se fica pastorando um vastíssimo rebanho. — Abastada de nobreza pela multidão de suas antiguidades, pelo venerando aspeto de seus edifícios, pelo número das suas casas religiosas e opulência da sua catedral, pela fidalguia de suas famílias, pelos varões com que tem honrado as letras e a milícia, pelas ciências de que já foi depósito, pelos monarcas a cuja corte já deu assento, Évora dentre tantas glórias só quis e conserva por brasão de suas armas um cavaleiro com a espada erguida, e duas cabeças cortadas.»

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

A PADEIRA DE ALJUBARROTA

A figura de Brites d’Almeida, a famosa PADEIRA DE ALJUBARROTA, é considerada pelos historiadores uma personagem lendária, uma heroína portuguesa, celebrizada e cantada pelo povo.
Invenção ou não, é uma figura que representa a vontade popular da época. Mulher de armas e heroína de Portugal, levantou a voz (e a pá), contra os castelhanos, salvaguardando a independência da pátria. Mulher audaz, sem medo e sem credo, apenas com a força interior que só uma mulher pode ter, a eterna padeira bem pode ser designada como a primeira feminista de Portugal. Brites (Breatriz ou Beatriz) de Almeida, mais conhecida como a Padeira de Aljubarrota, não deve ser vista apenas como uma padeira humilde que virou guerreira.
Não interessará muito se a cronologia da vida desta mulher está certa ou errada. O que importa é que estamos perante uma mulher de armas e num tempo em que as mulheres não tinham direitos, num reino de homens e soberania masculina. Brites de Almeida é o símbolo de alguém que levantou a voz contra todas regras e normas impostas ao mundo feminino, que fez da sua pouca beleza arma de arremesso e da sua força invulgar escudo de batalha. Realidade, mito ou lenda, Brites d’Almeida é o símbolo do ardor patriótico, quer do povo de Aljubarrota, quer de toda a nação, pois não era apenas uma mulher, por mais destemida que fosse, que seria capaz de enfrentar tantos fugitivos
O nome da Padeira de Aljubarrota anda associado à vitória portuguesa sobre os castelhanos na famosa Batalha de Aljubarrota. Com a sua pá, Brites d’Almeida, terá matado sete castelhanos que se esconderam no seu forno.
A batalha de Aljubarrota está inserida no contexto da sucessão ao trono de Portugal durante a crise de 1383 a 1385. O rei D. Fernando faleceu sem deixar filho varão e a única descendente que deixou foi a sua filha Dª Beatriz, entretanto casada com D. Juan I, rei de Castela e, pela ordem natural das coisas, ascendendo Dª Beatriz ao trono, o reino de Portugal corria o risco de ser anexado a Castela. Por força do Tratado de Salvaterra de Magos, no qual se previa o casamento de Dª Beatriz com o rei castelhano, ficou a regência do reino a cargo da rainha viúva Dª Leonor de Teles até que Dª Beatriz tivesse um filho varão e este atingisse 14 anos de idade, passando então a coroa portuguesa a pertencer aos descendentes de Castela. Dª Leonor de Teles era de ascendência leonesa e, entretanto, vivia em concubinato com o conde galego João Fernandes Andeiro.
Esta ligação amorosa foi alvo de muitas críticas. Era o conde de Andeiro, conselheiro e íntimo da rainha, com um papel importante na corte, e isto desagradava muito a um grupo de nobres, entre os quais se incluía D. João, mestre de Avis.
Embora algumas famílias nobres aceitassem, ou tolerassem, a união de Castela com Portugal, outras havia que, juntamente com o povo, se insurgiam contra esta possibilidade. Entretanto surgiram mais dois pretendentes à coroa portuguesa para competir com os reis castelhanos. Foram eles: D. João, príncipe de Portugal, filho de D. Pedro I e de Dª Inês de Castro (dado o suposto casamento dos seus pais) e D. João, mestre de Avis, também filho de D. Pedro e de Tereza Lourenço.
O príncipe D. João a esse tempo encontrava-se em Castela e, sendo um dos pretendentes ao trono, o rei castelhano, temendo que voltasse a Portugal e fosse aclamado rei, meteu-o numa prisão em Salamanca.
Com o decorrer dos acontecimentos e acicatado por um grupo de nobres e burgueses, dentre os quais figurava Nuno Álvares Pereira, o mestre de Aviz assassina, no paço, o conde de Andeiro. A rainha regente, Leonor de Teles, foge para Alenquer, dando início a uma sucessão de factos que levam à entrega da regência do reino a D. João, mestre de Avis.
Já há muito que D. Juan de Castela deixara de respeitar o Tratado de Salvaterra, considerando que não tinha que atender em nada ao nele convencionado, pois sua mulher era a legítima herdeira do trono português, e ele pretendia ser um soberano em pleno; isto é, não de dois reinos separados, mas de um único. Decide assim entrar em Portugal e cercar castelos e praças-fortes. Em 6 de abril de 1384 é derrotado na Batalha dos Atoleiros, mas em maio (26) o rei castelhano, juntamente com a esposa, avança em força com o seu exército sobre Lisboa e, com uma frota posicionada no Tejo, completa o cerco à cidade. Este cerco durou quatro meses e meio, sofrendo os castelhanos algumas investidas (pela sua periferia) por parte das forças do mestre de Avis, chefiadas por Nuno Álvares Pereia, acabando derrotado, não pelo nosso exército, mas pela Peste Negra que lhe causou muitas baixas, acabando por levantar o cerco a 3 de setembro.
A 6 de abril do ano seguinte reúnem-se as cortes em Coimbra que proclamam D. João, Grão-Mestre de Avis, como D. João I, Rei de Portugal.
Castela não desiste e, logo a seguir à aclamação de Coimbra, volta a invadir o nosso país e em maio as nossas tropas levam de vencidas as castelhanas na Batalha de Trancoso. Com esta derrota, o rei castelhano resolve avançar ao comando de um grande exército, o qual já vinha sendo preparado depois do cerco a Lisboa, e, acompanhado por um contingente de cavalaria francesa, na segunda semana de junho entra pelo Norte de Portugal com um poderoso exército de cerca de 32.000 homens, dirigindo-se para Sul com intenção de ir sobre Lisboa, a fim de por cobro àquilo a que considera uma rebelião.
D. Nuno Álvares Pereira reúne as suas tropas e desloca-se para Tomar, onde se juntam as forças de D. João I, e, juntas, decidem intercetar o inimigo nas imediações de Leiria, perto de vila de Aljubarrota. O exército português vinha reforçado com um destacamento inglês enviado a Portugal em resposta a um pedido de ajuda feito pelo mestre de Avis.
Os dois exércitos encontram-se a 14 de agosto, e neste confronto o exército de Castela foi praticamente aniquilado na Batalha de Aljubarrota. As perdas nesta batalha foram de tal forma graves, que D. Juan I de Castela nunca mais quis tentar nova invasão nos anos seguintes.
Com esta vitória D. João I afirmou-se como Rei de Portugal, colocando um ponto final ao interregno e à anarquia da Crise de 1383/1385. Porém, o reconhecimento de Castela só chegou em 1411 com a assinatura do tratado de Ayllon-Segóvia.
Feito o resumo dos acontecimentos que determinaram o confronto dos exércitos português e castelhano, voltemo-nos agora para a história da famosa padeira.
Como acima refiro, chamava-se ela Breatriz (ao que parece era assim que dizia à época) ou Beatriz, ou seja, Brites de Almeida. Há quem aponte como data do seu nascimento o ano de 1345 ou 1350, porém, e nisto todos parecem ser conformes, ela teria cerca 40 anos de idade aquando da batalha de Aljubarrota. Assim sendo, é de considerar como mais correto o ano de 1345.
Supostamente teria nascido em Faro, de pais pobres de humilde condição, donos de uma taverna ou estalagem.
Logo à nascença se notou nela uma singularidade: tinha 6 dedos em cada mão; o que era um bom augúrio para os seus pais, julgando ter em casa uma futura mulher muito esforçada e trabalhadora.
Tornou-se Brites numa mulher muita alta (como o homem mais agigantado); magra, mas corpulenta; de semblante feio, pálido e triste; nariz adunco e grande boca; olhos muito pequenos em proporção do rosto, sendo por isso alcunhada de pisqueira e cabelos crespos. Acrescentam alguns ter revelado desde criança um génio irascível, temerário e desordeiro e, já como mulher, de possuir uma certa beleza física e talhada para ser valente, destemida e mesmo desordeira.
Conta-se que quando trabalhava estalagem com seus pais, o filho do alcaide da cidade de Faro, que frequentava o estabelecimento, pretendia obter as boas graças da rapariga, mas como nada conseguia, pensou que pela via da força alcançaria a conquista; esta vendo-se ofendida atirou-lhe com uma bilha de barro, ferindo-o na cabeça.
Por morte de seus pais, aos 26 anos, gastou grande parte dos bens que herdara em aprender a “jogar armas”, tomando depois, de arrendamento, uma fazenda em Loulé, para onde foi viver. No entanto outros afirmam que com o resultado da venda dos poucos haveres herdados levou uma vida errante como negociante de feira em feira. Também se diz que terá fugido para Lisboa depois de partir a bilha na cabeça do filho do alcaide, regressando a Faro depois de morte do pai.
A viver na quinta em Loulé, um soldado alentejano ter-se-á encantado do seu aspeto varonil e pediu-a em casamento. Ela ter-lhe-á respondido que sim, mas que primeiro teria de a vencer numa briga. Ele aceitou o desafio e, no decorrer da luta, Brites ter-se-á excedido, ferindo-o de morte.
Para evitar ser presa, fugiu para Faro, embarcando sozinha num barco com destino a Andaluzia. Porém o vento contrário levou-a para alto mar, sendo raptada por um barco argelino e vendida no mercado de mulheres de Argel a um mouro poderoso. Segundo alguns, neste barco já se encontravam dois portugueses prisioneiros.
Depois de passar por grandes sustos, resistir a muita violência e defender-se com muita coragem e sorte, Brites d’Almeida convenceu dois escravos portugueses que estavam ao serviço do mesmo senhor e, disfarçada de homem, os três, uma noite, mataram quantos mouros os enfrentaram, fugiram do harém e meteram-se num barco que já tinham de prevenção, porém não cuidaram de levar mantimentos. Ao fim de 4 dias de luta com as ondas, numa viagem tormentosa, arribaram à Ericeira.
Com receio de ser reconhecida e presa pela morte do seu pretendente, disfarçou-se de homem e trabalhou como almocreve, contudo, a sua vida de condutora de bestas de carga também foi muito acidentada. Entre muitos desacatos, foi acusada de outra morte. Presa, foi conduzida às cadeias de Lisboa. Conseguiu libertar-se e rumou para Valada, onde se demorou pouco, indo para Aljubarrota para criada duma padeira. Aí viveu a nossa heroína junto da sua patroa durante oito meses e meio, herdando a padaria por morte da sua ama. Também se diz que foi libertada por não se provar este crime, mas, perante o caso de uma mulher disfarçada de homem para fugir à justiça pelo crime anterior, não é verisímil que a sua libertação fosse obra das autoridades.
Como se vê, até chegar a Aljubarrota, a vida da nossa popular heroína foi recheada de aventuras agitadas e o facto de vir a ser a proprietária da padaria por morte da sua patroa, é justificado da seguinte forma: o marido da velha padeira tinha sido feito cativo por piratas argelinos e Brites d’Almeida ter-lhe-á dado notícias do seu paradeiro, pelo que a patroa se afeiçoou tanto à sua criada que lhe doou o seu negócio.
Casou logo pouco depois da Batalha de Aljubarrota com um rico agricultor, morrendo provavelmente em 1393, de quem teve uma filha que, aquando da sua morte, teria cerca de seis anos. Morava na Rua Direita, numa casa pegada ao celeiro dos frades de Alcobaça que, após a sua morte, foi de uma mulher chamada Tubaroa, casa que depois se anexou ao celeiro.
Conta-se que já antes de Aljubarrota, Brites de Almeida manifestara o seu fervor patriótico e ódio aos castelhanos pois que juntamente com a multidão desordenada apedrejara, aquando do casamento ilícito de D. Fernando, o palácio de S. Martinho, em Lisboa; que se indignou quando soube do adultério de Leonor de Teles e que aplaudiu o Mestre d’Avis quando este matou o conde de Andeiro.
Encontrava-se, pois, Brites d’Almeida em Aljubarrota quando se deu a batalha. A tradição não diz que entrou nesta refrega, mas que foi após a vitória que se deu o feito histórico pelo qual se celebrizou. O confronto dos dois exércitos deu-se a onze quilómetros desta vila e, numa monografia de 1931, diz-se que «Durante a batalha de Aljubarrota, Brites de Almeida, por entre o povo da vila, assistia ansiosa ao desenrolar da batalha de qualquer ponto elevado das cercanias, e muito folgou ao ver a derrota dos espanhóis
Ao pressentirem a derrota, os castelhanos começaram a fugir em debandada e desordenadamente, e, esperando a oportunidade de escaparem com vida, passaram muitos deles pela povoação de Aljubarrota, procurando abrigo nas redondezas. A casa de Brites estava vazia e, (na opinião de outros) porque ela andava a ajudar nas escaramuças que ocorriam, sete deles esconderam-se no forno.
Ao regressar a casa encontrou a porta fechada e logo desconfiou da presença de inimigos. Entrou alvoraçada à procura e encontrando os homens, intimou-os a sair do forno e a renderem-se. Como estes fingissem dormir ou não entender, resolveu a questão matando-os à pazada. Dizem que tê-los-á cozido no seu forno, juntamente com pão com chouriço.
Diz-se também que depois disto, Brites d’Almeida constituiu uma milícia de mulheres para perseguir castelhanos, matando-os sem dó nem piedade.
A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira descreve este episódio histórico assim: «Na tarde da batalha de Aljubarrota, já derrotados os castelhanos, o povo perseguiu os fugitivos e Brites de Almeida capitaneou um troço de populares que se dedicaram a essa tarefa; diz a tradição que a padeira ao cair da noite encontrou escondidos no forno, que estava apagado, sete castelhanos que tentaram fugir ao populacho e que os matou
Uns dizem que Brites de Almeida viu  a batalha de fora, outros que ela com a sua pá se juntou ao exército português, mas numa coisa todos coincidem: foi com a sua pá que ela matou sete castelhanos que encontrou escondidos no seu forno, depois da vitória do lusos capitaneados pelo génio de Nuno Álvares Pereira.
Acerca da Padeira de Aljubarrota, Alexandre Herculano, escreveu: «Se a padeira de Aljubarrota é um mito, uma invenção popular do século XV, nem por isso a desprezemos. Um povo que dá a uma mulher ódio bastante contra os opressores estranhos para haver de matar a sangue frio sete desses inimigos; um povo que assim simbolizava o seu modo de sentir a tal respeito devia saber sustentar a independência nacional. Todavia não seremos nós que desterremos para o mundo dos fantasmas a famosa Brites de Almeida, forneira de Aljubarrota.» E continuando: «Este sucesso tradicional, quer real, quer fabuloso, tem em qualquer dos casos, um valor histórico, porque é um símbolo, uma expressão da ideia viva e geral aos portugueses daquele tempo, o ódio ao domínio estranho, o rancor com que todas as classes de indivíduos guerreavam aqueles que pretendiam sujeitá-los a esse domínio
Alguns escritores referem, talvez fantasiando, que a atestar o ódio contra os invasores, houve em Aljubarrota uma pequena calçada formada pelos ossos dos castelhanos mortos, e que esta com o passar do tempo foi mantida com ossadas de animais nos sítios danificados.
Dizem que a famosa pá, quando do período de 60 anos de domínio espanhol, entre 1580 a 1640, foi escondida numa das paredes dos Paços do Concelho. Apesar de muito procurada e insistentemente requisitada, nunca os espanhóis a descobriram e muito menos lhes foi entregue, com a desculpa de se não saber que destino tinha levado.
É muito possível que a Padeira de Aljubarrota seja uma criação até muito posterior à data da batalha e uma maneira de romancear uma vontade popular. Se tudo isto não é mais que uma heroína inventada e elevada à categoria de símbolo nacional, tal invenção não pode ser separada do descontentamento geral face à eminente perda da nossa soberania, e quando os castelhanos, ao darem a batalha como perdida, começaram a fugir em debandada, sendo perseguidos pelos aldeões locais, que entre esses aldeões estivesse uma padeira com a sua pá em riste, não é hipótese de todo impossível.
Fontes:
Portugal Antigo e Moderno, Volume Terceiro, págs. 146 e 147
http://www.jf-aljubarrota.pt/Padeira_de_Aljubarrota

sexta-feira, 3 de julho de 2020

RAINHA SANTA MAFALDA

Dª Mafalda Sanches de Portugal
Rainha santa Mafalda
Foi uma das filhas do segundo rei de Portugal, D. Sancho I e de sua esposa a rainha Dª Dulce de Aragão, e recebeu o nome da sua avó, a rainha Dª Mafalda de Saboia, mulher de D. Afonso Henriques. Como beata da Igreja Católica é venerada sob o nome de Rainha Santa Mafalda.
O local do seu nascimento é suposto ter sido em Amarante e em data indefinida; são apontadas como datas previsíveis, 1195, 1196 e 1190, havendo até quem aponte o ano de 1200. Sendo uma das filhas mais novas, legítimas, de D. Sancho e se estiver certa a data 1 de setembro de 1198 como a do falecimento de sua mãe, Dª Dulce de Aragão, esta última data, 1200, não pode ser anotada. Era, portanto, uma criança quando sua mãe faleceu. Também a data do seu falecimento é obscura. Embora seja apontado o dia 1 de maio, encontrei como o ano do óbito, 1256 e 1290, porém, a ser verdade que tenha acontecido o seu ocaso com a idade de 90 anos, terá morrido por volta de 1285. Encontra-se sepultada no Mosteiro de Arouca. Foi beatificada em 1792. O seu corpo repousa numa urna numa das alas da Igreja, para onde foi transladado em 1793.
Após o seu nascimento ficou em terras de Penafiel aos cuidados de Dª Urraca Viegas, da nobre família dos Ribadouro, bem conhecida de D. Sancho, pois Dª Urraca era filha de Egas Moniz, o aio de seu pai, o nosso primeiro rei, e de sua mulher Dª Tereza Afonso. Foi esta, já viúva, quem criou os príncipes de D. Afonso Henriques. Dª Urraca Viegas, além de esmerada educação, deixou a Dª Mafalda vários bens em testamento.
A infanta Mafalda era uma bela mulher, excelente nas proporções de corpo e fisionomia de rosto, como diz Ruy de Pina na crónica de D. Sancho I: “E assi houve El-Rei D. Sancho da Rainha Dona Doce sua mulher a Infanta Dona Mafalda, que em perfeições, e bondades do corpo, e d’alma, foi Princeza mui acabada (…)”.
Em 1214, no prosseguimento da sua guerra contra os mouros, pretendendo D. Afonso VIII de Castela encontrar-se com D. Afonso II de Portugal, a fim de tratar de negócios atinentes aos seus respetivos reinos e, ao que parece, associar o seu genro às suas empresas militares, partiu numa jornada de Burgos a Placência. O rei de Castela encontrava-se doente, agravando-se a sua enfermidade «quando soube se escusava elRey de Portugal de chegar aquela Cidade, & só vinha em se fazerem vistas nos confins dos Reynos, porque interpretava a desprezo próprio, sendo parente tão chegado, e maior de idade, (…)», acabando por falecer em Gutierre-Muñoz (5 de outubro) com a idade de 57 anos.
Sucedeu a D. Afonso VIII de Castela seu filho Henrique e, por testamento de seu pai, coube à sua mãe, rainha D. Leonor, a regência do reino. Dª Leonor viria a falecer pouco tempo depois, ficando então a regência e tutoria do jovem rei D. Henrique, a cargo da rainha de Leão, Dª Berengária, sua irmã mais velha, que se encontrava em Castela em virtude da anulação do seu casamento com o rei de Leão, mas esta, devido às várias disputas e para evitar desordens, renunciou à regência em favor de D. Álvaro de Lara, “fenhor principal, & de grande estado”, face ao parecer dos maiores do reino.
Rapidamente começou a contestação a D. Álvaro, pois este não terá respeitado as condições e limitações a que se comprometeu ao assumir a regência e tutoria, cometendo excessos no seu governo, usando de tirania e vingança contra vários senhores, quer da nobreza, quer mesmo da Igreja, não escapando a própria irmã do rei, a rainha Dª Berengária, o que levou a que esta, juntamente com outros senhores de Castela, intentassem afastá-lo destas funções, chegando mesmo a ser excomungado. Temendo perder o poder e correr o risco de ser perseguido, procurou apoiar-se fora do reino, quando já se levantavam grandes ameaças à sua substituição.
Portugal, através D. Afonso II, já tinha sido de grande valia para Castela, ajudando com o nosso exército o falecido monarca D. Afonso VIII na reconquista, ao participar numa coligação de forças cristãs na batalha de Navas de Tolosa, a qual marcou o início queda do Califado Almóada, e D. Álvaro pensou que encontraria no rei português o parceiro ideal para a persecução dos seus desígnios. Se o pensou, melhor o fez, e para isso enviou uma embaixada a D. Afonso II, pedindo-lhe que consentisse no casamento de sua irmã Dª Mafalda com o rei de Castela, procurando desta forma obter o apoio de Portugal para a sua empresa. D. Afonso consentiu de bom grado no casamento e logo partiu a princesa para Palença e daí para Medina d’el Campo, onde casaram. O rei de Castela teria por esta altura cerca de 12 anos e D. Mafalda era já uma senhora de 19 anos. D. Henrique veio a falecer pouco tempo depois, pelo que Dª Mafalda regressou a Portugal como partiu, ou seja, ainda donzela.
Este consórcio teve o condão de agravar ainda mais as divergências entre certa nobreza de Castela, nomeadamente a rainha Dª Berengária, que estava frontalmente contra este casamento e procurou meios para obter a sua anulação, baseando-se no facto de, devido ao grau de parentesco entre os nubentes, este casamento só poderia ser realizado com a devida “dispensação” papal. O papa Inocêncio III encarregou o bispo D. Telo de Palença e o bispo D. Moninho de Burgos de apreciarem este processo, os quais, ouvidas as partes, julgaram nulo o casamento, regressando Dª Mafalda a Portugal. Porém, tal não seria necessário, pois, segundo rezam as crónicas, daí a poucos dias, andando D. Henrique em Palença jogando com os seus fidalgos, um deles lançando alto um “mancal” (pau curto e ferrado, de tiro ao alvo), este tocou num telhado, fazendo cair uma telha, a qual atingiu o rei D. Henrique na cabeça, vindo a falecer poucos dias depois. Outros dizem que andava a jogar a “pella” com os seus criados (jogo com bola de couro cheia de lã), mas todos concordando que foi a queda de uma telha na cabeça, a causa da morte do juvenil rei, chegando assim ao fim da sua vida, sem ter completado 14 anos de idade.
D. Sancho I, pai de Dª Mafalda, padecia de uma enfermidade crónica que se desenvolveu na parte final do seu reinado, “a ponto que as esperanças de remédio inteiramente se desvaneceram”, pelo que, atendendo ao carácter do seu filho D. Afonso, o herdeiro do trono, antes da sua morte deixou testamento onde dispôs as suas últimas vontades, distribuindo os seus bens por todos os seus filhos legítimos e netos, não se esquecendo das amantes e dos filhos que teve delas, assim como netos, abades, conventos, mosteiros, etc., não faltando no rol, bispos e o papa: «Em nome de Deos. Eu Dom Sancho pella graça de Deos Rey de Portugal, temendo o dia de minha morte e pera faluação de minha alma, & bem de meus filhos, & de todo meu Reyno, faço teftamento, por meio do qual permaneçaõ em paz & tranquilidade, afi meus filhos & vaffalos, como o Reyno, & tudo o mais de que a piedade diuina me fez entrega. (…) A Rainha Dona Mafalda dei dous mofteiros, Bouças, & Arouca, & a herdade de Cea, a qual foy de fua mãy, & quarenta mil marauedis, com duzentos marcos de prata.» E para prevenir as discórdias, principalmente entre irmãos, que este testamento poderia originar, D. Sancho obrigou o seu sucessor no reino, D. Afonso, a jurá-lo e a subscrevê-lo: «(…). E eu Rey Dom Afonfo (naquele tempo o príncipe herdeiro era tratado por rei) filho do sobredito Rey Dom Sancho, & da Rainha Dona Dulce prometo firmemente na fé de Jefu Chrifto de cumprir, e atentar por todas eftas coufas fe viuer mais que meu pay, & que naõ impidirei, nem cõfentirei impedirfe a menor dellas. E difto fiz já omagem nas mãos de meu pay, & tambem jurei nas mãos do eleito de Braga, do Bifpo de Coimbra, & do Abbade de Alcobaça, que cumprirei e terei particular cuidado de todas eftas coufas.»
De facto, D. Afonso era de ânimo áspero e austero, e, subindo ao trono após o falecimento de D. Sancho, quebrou o seu juramento, alegando que as coisas do reino não se podiam dar nem alhear, “que era em mui diminuição do Reino”, pedindo a restituição das vilas e fortalezas que seu pai havia doado. O rei baseava-se na doutrina contida nas resoluções do concílio de Toledo que compõem a introdução do Código Visigótico e onde se encontram as leis políticas do começo da existência da monarquia, segundo as quais “o património real passava integralmente do rei fallecido para o successor, não podendo reverter em beneficio dos filhos senão os bens adquiridos antes de elle obter a coroa.” Os seus irmãos, os infantes D. Pedro e D. Fernando saíram de Portugal. D. Pedro foi para a corte de Leão e D. Fernando para França, para junto de sua tia a condessa de Flandres. Entretanto, as suas irmãs, as infantas Dª Teresa e Dª Sancha haviam requerido que o papa Inocêncio III “lhes confirmasse em especial o dominio daquelles logares” que lhes couberam em testamento, a saber, o senhorio de Montemor-o-Velho e Esgueira a Dª Teresa e o de Alenquer a Dª Sancha. Porém, e porque D. Afonso tinha alguma razão, logo se levantaram guerras entre ele e suas irmãs, por se recusarem estas ao pedido de seu irmão.
Dª Mafalda, que além da herança, já possuía, ao que parece, o mosteiro de Tuias, também suplicou da Cúria Romana “um titulo que a protegesse contra as tentativas de D. Afonso”, tendo para isso sido incumbidos da execução da respetiva bula os prelados de Compostela, Guarda e Lisboa. A decisão papal determinou que dos bens que seu pai lhe deixara, ela só podia ter o direito de padroado, ou seja, de benefício. Contudo, Mafalda prevendo que o confronto com seu irmão lhe era desfavorável, contornou o obstáculo associando os seus interesses à ordem dos Hospitalários, doando-lhes o domínio de Bouças e outros lugares, reservando para si o usufruto em vida. Uma vez que resolvera viver como monja, fazia uma valiosa doação à Ordem do Hospital e nada perdia, pois pouco lhe importava que os seus bens revertessem para os hospitalários ou para a coroa. Depois de várias disputas e como não havia provas suficientes para resolver esta questão, o papa Clemente III nomeou os bispos de Astorga, Burgos e Segóvia, para que julgassem a questão em definitivo, que ao que parece, “ao menos quanto a Bouças, Mafalda ficou despojada da herança paterna.”
À luz da sociedade medieval havia várias condicionantes nas heranças, nomeadamente quando estavam em causa os membros das famílias reais e da nobreza. Em primeiro lugar surge a questão da linhagem na sucessão, necessariamente masculina, o que implicava a inferiorização dos outros filhos. Geralmente os segundos filhos recebiam uma proporção inferior do património ou seguiam a via militar ou religiosa. As filhas viviam à custa do chefe da linhagem e podiam servir como elemento estratégico em alianças através do casamento ou, a exemplo dos homens, seguir a via religiosa. Para tal chegava-se a reservar para elas comunidades inteiras ou a fundar abadias. A Ordem de Cister foi a ordem de eleição para as mulheres da realeza e da alta nobreza, e terá sido esta uma das razões para a opção tomada pelas filhas de D. Sancho I.
Com cerca de onze anos, Dª Mafalda juntou-se às suas irmãs Teresa e Sancha no mosteiro de Lorvão, que já lá habitavam. Originalmente masculino, em 1206 mudou para a Ordem de Cister e passou ao mesmo tempo a ser feminino, com a invocação de Santa Maria, sofrendo uma profunda transformação devido à intervenção de Dª Teresa. Teresa e Sancha vieram a ser beatificadas e encontram-se sepultadas na igreja do mosteiro.
Como acima referi, Dª Mafalda partiu para Castela a fim de casar com menino rei, Henrique I, tendo regressado a Portugal com o título de rainha de Castela, pouco tempo depois, em virtude do falecimento precoce do seu esposo, bem como da anulação do seu casamento que, entretanto, tinha sido requerido.
Uma vez em Portugal, há quem afirme que procurou reconfortar-se junto da sua velha ama, Dª Urraca Viegas da família dos Ribadouro, outros que se enclausurou no convento de Arouca.
Uma outra versão diz que seu irmão, “D. Afonso II, por ella dizer que queria morrer freira, lhe deu a escolher o convento de Portugal que ella quisesse, para n’elle se recolher.”, tendo ela preferido o convento de Arouca, indo para lá viver em 1220.
Qualquer que seja a versão certa, Dª Mafalda acabou por ir viver no mosteiro de Arouca, encontrando-o arruinado, com umas rendas alienadas e outras perdidas, a igreja sem ornamentos e as freiras vivendo na pobreza, às custas do seu trabalho por falta de rendimentos. Mafalda revitalizou-o, conseguindo do bispo de Lamego D. Paio (1224) autorização para a substituição da Ordem Beneditina para a Ordem de Cister, tornando-se ela própria monja cisterciense.
Faleceu no mosteiro de Rio Tinto, tendo, aquando da exumação do seu corpo para ser trasladado para Arouca, este sido encontrado incorrupto, gerando uma onda de fervor religioso.
Foi beatificada pelo papa Pio VI a 27 de junho de 1793, sendo festejada pela Igreja Católica a 2 de maio.
A MULA DA RAINHA SANTA
Diz a lenda que quis a destino que a rainha Santa Mafalda morresse em Rio Tinto, aos 90 anos, durante uma cobrança de foros e rendas. Quiseram os habitantes da localidade que ela lá fosse sepultada, discordando os de Arouca com a alegação de que Dª Mafalda tinha passado grande parte da sua vida no mosteiro de Arouca. Então alguém se lembrou que a santa costumava viajar de mula, sugerindo que se colocasse o caixão em cima da mula. Para onde ela se deslocasse, seria o local da sepultura. A mula dirigiu-se para Arouca.
Fontes:
Crónica de D. Sancho I, págs. 92 a 95 (Ruy de Pina)
Crónica de D. Afonso II, pág. 22 (Ruy de Pina)
Monarquia Lusitana, Quarta Parte, págs. 61 a 82v. (Fr António Brandão)
Portugal Antigo e Moderno, Volume I, pág. 238FF (Pinho Leal)
História de Portugal, Tomo III, Livro III, págs. 277 e 278 (Alexandre Herculano)
História de Portugal, Tomo IV, Livro IV, págs. 15 a 21, 60 e 61 (Alexandre Herculano)
A mula da rainha

terça-feira, 21 de abril de 2020

A História da Humanidade, as suas Epidemias e Pandemias

Vivemos atualmente um momento histórico em consequência da Pandemia do COVID-19, um dos sete coronavírus humanos, considerado inicialmente um surto, e que de epidemia, evoluiu depois para pandemia.
Identificado pela primeira vez na cidade de Wuhan, capital da província de Hubei, na China, no início de dezembro, do ano passado, os primeiros casos desta doença só foram divulgados no último dia do ano.
Um mês depois, em 30 de janeiro deste ano, a OMS declarou que este surto «constitui uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional», e, embora já estivesse difundido pelos cinco continentes, só o considerou como Pandemia a 11 de março de 2020.
Presentemente, em termos mundiais, o número de casos ronda os 2,4 milhões de infetados, 537.000 curados e 167.000 mortes registadas. Na Itália o número de vítimas já ultrapassa o número ocorrido na China, país onde o surto surgiu pela primeira vez.
Foram confirmados no dia 2 de março os primeiros casos em Portugal, de início no norte, espalhando-se rapidamente por todo o território nacional, incluindo Madeira e Açores.
O termo epidemia provém da fusão dos termos gregos epi, que significa “sobre” e demos que significa “povo”, ou seja, algo que se derrama pela população causando alarme e medo.
A Pandemia é considerada como o pior dos cenários para a saúde humana. Também de origem grega, esta palavra é a união de pan que significa “tudo ou todos” e demos que, como se refere acima, significa “povo”. Caracteriza-se quando a doença, em fase epidémica, se generaliza pelos indivíduos localizados nas mais diversas regiões, como um continente ou mesmo todo a planeta.
Temos como exemplos mais recentes, em 2009, quando a Gripe A passou de Epidemia a Pandemia, após a OMS ter verificado existirem casos desta doença espalhados em todos os continentes, assim como aconteceu com a SIDA.
Desde os tempos mais remotos têm existido episódios de epidemias e pandemias por todo o planeta, com números elevadíssimos de vítimas e consequências nefastas, quer a nível social, quer económico ou político.
A maior pandemia de que temos conhecimento na antiguidade ocorreu entre 430 a 427 a.C., durante a guerra do Peloponeso, apelidada de Peste de Atenas, Praga de Atenas, ou a Peste de Egipto, tendo vitimado dois terços da população daquela cidade. Originada na Etiópia, espalhou-se rapidamente pela população, que estava confinada pelo cerco das tropas espartanas.
Em 250 a.C. surgiu a Peste de Cipriano, nome atribuído em reconhecimento ao bispo de Cartago. De origem desconhecida pensa-se que tenha começado na Etiópia e, espalhando-se pelo norte de África, passou o Egipto, acabando por chegar a Roma. Vitimou mais de metade dos habitantes de Alexandria, e atingiu a Grã-Bretanha, no ano de 444, obrigando os Bretões enfraquecidos a procurar a ajuda dos Saxões para combater os Escotos e os Pictos.
Apesar de apelidada de “peste”, os sintomas descritos não são mesmos dos da peste bubónica.
Na Antiguidade, “peste” era sinónimo de enfermidade contagiosa e de elevada mortalidade.
O vírus responsável pela “Peste de Cipriano” é, ainda hoje, um enigma. Pode ter sido uma febre hemorrágica viral ou uma gripe causada por um vírus idêntico ao que causou a Gripe Espanhola em 1918. Estava-se na segunda metade do século III e as ruas de Alexandria estavam pejadas de cadáveres. A fome, a violência e os tumultos causavam estragos em toda a cidade. A epidemia, que começou na Etiópia, alastrou pelo Egipto, ameaçando destruir todos os habitantes de Alexandria.
A Peste Antonina, também conhecida como a Peste de Galeno, surgiu em 165 a.C. Pensa-se que foi um surto de varíola ou sarampo, que afetou de início os Hunos e acabou por alastrar a todo o Império Romano. Marco Aurélio, apesar de se lhe ter atribuído a morte a causas naturais, presume-se que tenha sido vítima desta doença.
Considerada como a primeira pandemia historicamente documentada, a Praga de Justiniano ocorreu entre 541 e 750 da nossa era, e foi o primeiro caso de peste bubónica que vitimou aproximadamente 50 milhões de pessoas, ou seja, mais de metade da população europeia. Com origem no Egito, generalizou-se pelo Império Bizantino (no tempo do imperador Justiniano I “o Grande”) chegando até ao Mediterrâneo.
No século XI, a Lepra, também conhecida como a doença de Hasen, devastou a Europa. Esta doença era, na idade média, encarada como um castigo divino, considerando-se que os doentes tinham sido amaldiçoados.
Aquela que veio a ser considerada como a maior pandemia da história da nossa civilização, a Peste Negra ou Peste Bubónica, iniciou-se em 1347 na Ásia Central, devastando a Europa, em consequência da falta de saneamento, dizimando entre 25 a 75 milhões de vítimas.
Em consequência da colonização de alguns países por outros mais desenvolvidos, doenças inexistentes em alguns continentes evoluíram para pandemias, exemplo: varíola e sarampo. Quando em 1496 Cristóvão Colombo chegou à América, os Tainos, povo indígena das Caraíbas, eram cerca de 60.000, e, em 1548 eram menos de 500. O sarampo e a peste negra são responsáveis pela morte de cerca de 90% da população. O império Asteca foi dizimado por um surto de varíola.
Em 1665 Londres foi assolada pela peste bubónica, conhecida como a Grande Peste de Londres, que causou a morte a cerce de 20% da população. No ano seguinte Londres foi abalada por um grande incêndio, quando ainda estavam a recuperar da trágica peste.
O vírus da Gripe, em 1580, na Ásia, deu origem às primeiras notícias de pandemias. Em 6 meses o vírus espalhou-se pela Europa, África e, mais tarde, pela América do Norte, matando cerca de 10% da população nas zonas afetadas.
Em 1729, a Gripe voltou a atacar na Rússia, tornando-se pandémica. Alastrou depois, em 1732, por todo o mundo dizimando, em 36 meses, cerca de 500 mil pessoas. Na China ocorreu outra pandemia (1781), que veio infetar a Europa em 6 meses, e, em 1830, nova pandemia de gripe, inicialmente na China, infetou cerca de 25% da população, ao passar pela Ásia, Europa e Américas.
Além da gripe, outras doenças deram origem a pandemias, como a cólera, que nos trouxe 8 grandes pandemias que afetaram o mundo inteiro.
-      A primeira Pandemia de Cólera (1816) da série, terá começado na Índia, alastrando pela China até à república do Azerbaijão, Cazaquistão, Turquemenistão e Rússia, espalhando-se posteriormente pelo mundo. Vitimou à volta de 150.000 pessoas.
-      A cólera teve início na Europa em 1832, alastrando para a Inglaterra, Estados Unidos e Canadá.
-      Aquela que terá sido a Pandemia de Cólera mais devastadora de sempre, surgiu em 1852 e devastou a Rússia, causando mais de um milhão de mortes.
-      Entre 1863 e 1875 expandiu-se rapidamente pela Europa e África.
-      Em 1866 a América do Norte é fortemente contaminada.
-      A cólera atingiu principalmente a Alemanha, em 1892, causando mais de 8.000 mortes no país.
-      A Rússia é particularmente atingida pela cólera em 1899 mas, com o avanço da saúde pública, a Europa pouco é afetada.
-      Em 1961 surgiu na Indonésia, alastrando para o Bangladesh até à Índia, chegando à Rússia em 1966.
Uma nova vaga de Peste Bubónica teve início na China em 1855 e espalhou-se com rapidez pela Índia, atingindo Hong Kong, estimando-se que tenha vitimado 15 milhões de pessoas e que só tenha sido extinta em 1960.
Uma epidemia de sarampo na Austrália acabou por virar Pandemia de Sarampo nas Ilhas Fiji (1875). Estas ilhas eram colónias britânicas, cujo chefe Ratu Cakobau veio infetado após o regresso de uma visita àquele continente, acabando por disseminar esta doença. Morreu um terço da população das ilhas, 40 mil pessoas.
A Gripe Russa apareceu em 1889. Uma Pandemia que começou na Sibéria, alastrou ao Cazaquistão e se difundiu pela Europa, América do Norte e África. Em 1890 tinha já provocado cerca de 360.000 mortes.
Desconhecesse-se a origem geográfica da Gripe Espanhola, Gripe Pneumónica, Peste Pneumónica ou apenas Pneumónica, pandemia que apareceu em 1918, espalhando-se pelo mundo até ao ano seguinte.
Esta designação de “Gripe Espanhola” deve-se ao facto de ter aparecido no auge da Primeira Grande Guerra, na qual estavam envolvidas as grandes potências mundiais. De um lado os aliados, Grã-Bretanha, França, Império Russo e os EUA, e do outro a Alemanha e Áustria-Hungria. Os países em confronto tentavam a todo o custo suster informações sobre a doença, para evitar o desânimo na sua população com notícias sobre grande número de civis doentes ou a morrer.
Como país neutral, a Espanha não necessitava de ocultar a informação, e noticiava “a informação completamente errónea” de que tinha sido o foco da doença e que a sua população era a mais castigada.
 A primeira notícia sobre esta doença apareceu no jornal espanhol El Sol a 22 de maio de 1918.
São várias as suposições aonde terá começado. Para uns, esta pandemia terá tido o seu início e sido espalhada depois a partir de um acampamento militar no Kansas (Estados Unidos), entre os militares que mais tarde viajaram para a Europa, outros, tendem a admitir que se terá iniciado a partir da base militar de Etables, no norte da França, outros ainda, admitem que terá sido disseminada através dos soldados indochineses que lutaram em França entre 1916/1918.
A guerra existente terá sido a consequência do grande desenvolvimento desta doença. A concentração de milhões de soldados criou as condições necessárias para o desenvolvimento de estirpes de vírus mais agressivos e facilitou a sua propagação pelo mundo, infetando cerca de um terço da população mundial, sendo a doença infeciosa que causou o maior número de vítimas. Pelo período de um ano terá causado a morte a cerca de 5% da população, à volta de 50 a 100 milhões de mortes em todo o mundo, e entre 50 a 70 mil em Portugal, entre 1918/19.
Considerada a maior pandemia mundial conhecida até hoje, a Gripe Espanhola causou mais mortes que a Peste Negra ao longo de vários séculos, quase três vezes mais que o números de mortes na Primeira Grande Guerra, contagiando cerca de 500 milhões de pessoas e matando mais em 25 semanas do que a SIDA em 25 anos, tendo sido 25 vezes mais fatal, quando comparada com outros vírus idênticos.
Os primeiros casos da gripe pneumónica em Portugal sucederam em maio de 1918, dizimando em dois anos 59.000 de pessoas, com uma taxa de mortandade de 9,8%, ultrapassada penas, na Europa, pela Espanha, Itália e Hungria.
O Dr. Ricardo Jorge, diretor-geral de então no sector da saúde, liderou o combate à doença, ao ser nomeado comissário-geral do governo na luta contra a epidemia. Um pouco à semelhança da situação atual, as escolas foram encerradas, proibidas as feiras e romarias, e, como medida profilática, a população foi aconselhada a lavar as mãos com frequência e cobrir a boca e o nariz ao espirrar. Dezenas de espaços públicos foram disponibilizados como enfermarias e, face ao grande número de vítimas ao longo de várias semanas, viveram-se situações de verdadeiro caos.
A Gripe Asiática, surgiu em fevereiro de 1957 como uma das maiores epidemias de gripe. O seu início foi no norte da China, expandindo-se o vírus rapidamente e atingindo, em cerca de 2 meses, Singapura e Hong Kong, disseminando-se a partir daí para a Austrália, Índia, África, Europa e os Estados Unidos. Em cerca de 10 meses estava presente em todos os países. No dia 7 de agosto, através do desembarque de passageiros vindos de África no navio “Moçambique”, esta gripe entrou em Portugal. Em todo o mundo 1,1 milhões de pessoas foram vítimas desta Pandemia.
A Gripe de Hong Kong surgiu em julho de 1968 onde foi detetado o primeiro caso, vindo a causar impacto na Guerra de Vietname, ao ser levada para os Estados Unidos, disseminando-se o vírus rapidamente pelo mundo. Ao fim de 3 meses estava na Europa, Austrália, Índia e Filipinas, matando cerca de 1 milhão de pessoas. Só em Hong Kong foram 500 mil, 15% da sua população.
O VIH/SIDA veio em 1981. A sua disseminação aumentou rapidamente nos EUA no início dos anos 80. Identificada a sua origem em chimpanzés, em África, mais de 35 milhões de pessoas foram vitimadas por esta doença. Os avanços da medicina permitem aos pacientes o controlo da doença, mas ainda não a sua cura.
Inicialmente designada de gripe suína, nova Pandemia de Gripe surgiu em 2009, depois rotulada de Gripe A em abril desse ano. Foi um surto inicial duma variante de gripe suína acorrida no México, em março, e que veio a atingir a Europa e a Oceânia. Esta Pandemia de gripe causada pelo vírus H1N1, vitimou 203 mil pessoas em todo o mundo devido a problemas respiratórios, afetando principalmente as pessoas mais novas (5 a 24 anos) e as populações dalgumas regiões do continente americano.
Estudos indicam que o número de mortes em países como a Argentina, Brasil e México, foi 20 vezes maior que países menos atingidos, como a Nova Zelândia, Austrália e grande parte da Europa.
Através de várias campanhas de vacinação, estamos hoje melhor preparados para enfrentar uma nova pandemia, face aos progressos nas tecnologias de comunicação que nos permitem uma reação mais rápida à ameaça de uma nova contaminação.
Temos hoje à nossa disposição novos recursos que nos podem ajudar a prever o avanço do contágio por um vírus. É o caso de termómetros inteligentes ligados à internet, cujas medições permitem detetar o seu início em qualquer local do mundo, de simulações computorizadas e de inúmeros medicamentos disponíveis. Apesar disto, no mundo global em que vivemos, um vírus pode generalizar-se mais facilmente e surpreender-nos pela sua resistência às terapias existentes ou gerar mutações, criando novas variantes, contagiando outras espécies, incluindo o ser humano, tornando, por isso, necessário desenvolver rapidamente novos medicamentos capazes de os destruir.
Outras doenças como o Ébola, o Zika, o Dengue e o Chikungunya, são patologias de preocupação mundial pela sua enorme facilidade de contaminação e que podem dar origem a grandes pandemias, sendo objeto de estudo intensivo por parte da comunidade científica. Alguns investigadores e cientistas, assim como especialista em doenças infeciosas David Quamen, afirmam que com o corona vírus controlado, o mundo precisa de se preparar para a próxima pandemia, pois, mais tarde ou mais cedo, novos surtos pandémicos surgirão.
A “Campanha pela Natureza” do National Geographic afirma que no futuro haverá mais doenças com o COVID-19, em consequência de vários fatores, entre os quais a contínua desflorestação e a conversão de animais selvagens em animais de estimação, em alimentos ou em medicamentos, ao mesmo tempo, que para vários ambientalistas, o aumento do risco de contrair novos vírus se deve ao aumento da população em todo o mundo.
É importante que sejam tomadas medidas urgentes e se criem novos regulamentos com a finalidade de protegermos o planeta, e muitos investigadores alertam-nos para isso.
Referências:
Gripe pneumónica, a pandemia de 1918-19
Principais pandemias
Centenário da Gripe Espanhola, que de Espanha só tem o nome
Pandemia de gripe de 2009 matou mais pessoas do que se pensava
Revisitando a espanhola: a gripe pandémica de 1918 no Rio de Janeiro
A praga de Cipriano, a estranha epidemia que causou a queda de Alexandria
A epidemia pneumónica em Portugal no seu tempo histórico
A medicina e a influenza espanhola de 1918