quarta-feira, 5 de agosto de 2020

A PADEIRA DE ALJUBARROTA

A figura de Brites d’Almeida, a famosa PADEIRA DE ALJUBARROTA, é considerada pelos historiadores uma personagem lendária, uma heroína portuguesa, celebrizada e cantada pelo povo.
Invenção ou não, é uma figura que representa a vontade popular da época. Mulher de armas e heroína de Portugal, levantou a voz (e a pá), contra os castelhanos, salvaguardando a independência da pátria. Mulher audaz, sem medo e sem credo, apenas com a força interior que só uma mulher pode ter, a eterna padeira bem pode ser designada como a primeira feminista de Portugal. Brites (Breatriz ou Beatriz) de Almeida, mais conhecida como a Padeira de Aljubarrota, não deve ser vista apenas como uma padeira humilde que virou guerreira.
Não interessará muito se a cronologia da vida desta mulher está certa ou errada. O que importa é que estamos perante uma mulher de armas e num tempo em que as mulheres não tinham direitos, num reino de homens e soberania masculina. Brites de Almeida é o símbolo de alguém que levantou a voz contra todas regras e normas impostas ao mundo feminino, que fez da sua pouca beleza arma de arremesso e da sua força invulgar escudo de batalha. Realidade, mito ou lenda, Brites d’Almeida é o símbolo do ardor patriótico, quer do povo de Aljubarrota, quer de toda a nação, pois não era apenas uma mulher, por mais destemida que fosse, que seria capaz de enfrentar tantos fugitivos
O nome da Padeira de Aljubarrota anda associado à vitória portuguesa sobre os castelhanos na famosa Batalha de Aljubarrota. Com a sua pá, Brites d’Almeida, terá matado sete castelhanos que se esconderam no seu forno.
A batalha de Aljubarrota está inserida no contexto da sucessão ao trono de Portugal durante a crise de 1383 a 1385. O rei D. Fernando faleceu sem deixar filho varão e a única descendente que deixou foi a sua filha Dª Beatriz, entretanto casada com D. Juan I, rei de Castela e, pela ordem natural das coisas, ascendendo Dª Beatriz ao trono, o reino de Portugal corria o risco de ser anexado a Castela. Por força do Tratado de Salvaterra de Magos, no qual se previa o casamento de Dª Beatriz com o rei castelhano, ficou a regência do reino a cargo da rainha viúva Dª Leonor de Teles até que Dª Beatriz tivesse um filho varão e este atingisse 14 anos de idade, passando então a coroa portuguesa a pertencer aos descendentes de Castela. Dª Leonor de Teles era de ascendência leonesa e, entretanto, vivia em concubinato com o conde galego João Fernandes Andeiro.
Esta ligação amorosa foi alvo de muitas críticas. Era o conde de Andeiro, conselheiro e íntimo da rainha, com um papel importante na corte, e isto desagradava muito a um grupo de nobres, entre os quais se incluía D. João, mestre de Avis.
Embora algumas famílias nobres aceitassem, ou tolerassem, a união de Castela com Portugal, outras havia que, juntamente com o povo, se insurgiam contra esta possibilidade. Entretanto surgiram mais dois pretendentes à coroa portuguesa para competir com os reis castelhanos. Foram eles: D. João, príncipe de Portugal, filho de D. Pedro I e de Dª Inês de Castro (dado o suposto casamento dos seus pais) e D. João, mestre de Avis, também filho de D. Pedro e de Tereza Lourenço.
O príncipe D. João a esse tempo encontrava-se em Castela e, sendo um dos pretendentes ao trono, o rei castelhano, temendo que voltasse a Portugal e fosse aclamado rei, meteu-o numa prisão em Salamanca.
Com o decorrer dos acontecimentos e acicatado por um grupo de nobres e burgueses, dentre os quais figurava Nuno Álvares Pereira, o mestre de Aviz assassina, no paço, o conde de Andeiro. A rainha regente, Leonor de Teles, foge para Alenquer, dando início a uma sucessão de factos que levam à entrega da regência do reino a D. João, mestre de Avis.
Já há muito que D. Juan de Castela deixara de respeitar o Tratado de Salvaterra, considerando que não tinha que atender em nada ao nele convencionado, pois sua mulher era a legítima herdeira do trono português, e ele pretendia ser um soberano em pleno; isto é, não de dois reinos separados, mas de um único. Decide assim entrar em Portugal e cercar castelos e praças-fortes. Em 6 de abril de 1384 é derrotado na Batalha dos Atoleiros, mas em maio (26) o rei castelhano, juntamente com a esposa, avança em força com o seu exército sobre Lisboa e, com uma frota posicionada no Tejo, completa o cerco à cidade. Este cerco durou quatro meses e meio, sofrendo os castelhanos algumas investidas (pela sua periferia) por parte das forças do mestre de Avis, chefiadas por Nuno Álvares Pereia, acabando derrotado, não pelo nosso exército, mas pela Peste Negra que lhe causou muitas baixas, acabando por levantar o cerco a 3 de setembro.
A 6 de abril do ano seguinte reúnem-se as cortes em Coimbra que proclamam D. João, Grão-Mestre de Avis, como D. João I, Rei de Portugal.
Castela não desiste e, logo a seguir à aclamação de Coimbra, volta a invadir o nosso país e em maio as nossas tropas levam de vencidas as castelhanas na Batalha de Trancoso. Com esta derrota, o rei castelhano resolve avançar ao comando de um grande exército, o qual já vinha sendo preparado depois do cerco a Lisboa, e, acompanhado por um contingente de cavalaria francesa, na segunda semana de junho entra pelo Norte de Portugal com um poderoso exército de cerca de 32.000 homens, dirigindo-se para Sul com intenção de ir sobre Lisboa, a fim de por cobro àquilo a que considera uma rebelião.
D. Nuno Álvares Pereira reúne as suas tropas e desloca-se para Tomar, onde se juntam as forças de D. João I, e, juntas, decidem intercetar o inimigo nas imediações de Leiria, perto de vila de Aljubarrota. O exército português vinha reforçado com um destacamento inglês enviado a Portugal em resposta a um pedido de ajuda feito pelo mestre de Avis.
Os dois exércitos encontram-se a 14 de agosto, e neste confronto o exército de Castela foi praticamente aniquilado na Batalha de Aljubarrota. As perdas nesta batalha foram de tal forma graves, que D. Juan I de Castela nunca mais quis tentar nova invasão nos anos seguintes.
Com esta vitória D. João I afirmou-se como Rei de Portugal, colocando um ponto final ao interregno e à anarquia da Crise de 1383/1385. Porém, o reconhecimento de Castela só chegou em 1411 com a assinatura do tratado de Ayllon-Segóvia.
Feito o resumo dos acontecimentos que determinaram o confronto dos exércitos português e castelhano, voltemo-nos agora para a história da famosa padeira.
Como acima refiro, chamava-se ela Breatriz (ao que parece era assim que dizia à época) ou Beatriz, ou seja, Brites de Almeida. Há quem aponte como data do seu nascimento o ano de 1345 ou 1350, porém, e nisto todos parecem ser conformes, ela teria cerca 40 anos de idade aquando da batalha de Aljubarrota. Assim sendo, é de considerar como mais correto o ano de 1345.
Supostamente teria nascido em Faro, de pais pobres de humilde condição, donos de uma taverna ou estalagem.
Logo à nascença se notou nela uma singularidade: tinha 6 dedos em cada mão; o que era um bom augúrio para os seus pais, julgando ter em casa uma futura mulher muito esforçada e trabalhadora.
Tornou-se Brites numa mulher muita alta (como o homem mais agigantado); magra, mas corpulenta; de semblante feio, pálido e triste; nariz adunco e grande boca; olhos muito pequenos em proporção do rosto, sendo por isso alcunhada de pisqueira e cabelos crespos. Acrescentam alguns ter revelado desde criança um génio irascível, temerário e desordeiro e, já como mulher, de possuir uma certa beleza física e talhada para ser valente, destemida e mesmo desordeira.
Conta-se que quando trabalhava estalagem com seus pais, o filho do alcaide da cidade de Faro, que frequentava o estabelecimento, pretendia obter as boas graças da rapariga, mas como nada conseguia, pensou que pela via da força alcançaria a conquista; esta vendo-se ofendida atirou-lhe com uma bilha de barro, ferindo-o na cabeça.
Por morte de seus pais, aos 26 anos, gastou grande parte dos bens que herdara em aprender a “jogar armas”, tomando depois, de arrendamento, uma fazenda em Loulé, para onde foi viver. No entanto outros afirmam que com o resultado da venda dos poucos haveres herdados levou uma vida errante como negociante de feira em feira. Também se diz que terá fugido para Lisboa depois de partir a bilha na cabeça do filho do alcaide, regressando a Faro depois de morte do pai.
A viver na quinta em Loulé, um soldado alentejano ter-se-á encantado do seu aspeto varonil e pediu-a em casamento. Ela ter-lhe-á respondido que sim, mas que primeiro teria de a vencer numa briga. Ele aceitou o desafio e, no decorrer da luta, Brites ter-se-á excedido, ferindo-o de morte.
Para evitar ser presa, fugiu para Faro, embarcando sozinha num barco com destino a Andaluzia. Porém o vento contrário levou-a para alto mar, sendo raptada por um barco argelino e vendida no mercado de mulheres de Argel a um mouro poderoso. Segundo alguns, neste barco já se encontravam dois portugueses prisioneiros.
Depois de passar por grandes sustos, resistir a muita violência e defender-se com muita coragem e sorte, Brites d’Almeida convenceu dois escravos portugueses que estavam ao serviço do mesmo senhor e, disfarçada de homem, os três, uma noite, mataram quantos mouros os enfrentaram, fugiram do harém e meteram-se num barco que já tinham de prevenção, porém não cuidaram de levar mantimentos. Ao fim de 4 dias de luta com as ondas, numa viagem tormentosa, arribaram à Ericeira.
Com receio de ser reconhecida e presa pela morte do seu pretendente, disfarçou-se de homem e trabalhou como almocreve, contudo, a sua vida de condutora de bestas de carga também foi muito acidentada. Entre muitos desacatos, foi acusada de outra morte. Presa, foi conduzida às cadeias de Lisboa. Conseguiu libertar-se e rumou para Valada, onde se demorou pouco, indo para Aljubarrota para criada duma padeira. Aí viveu a nossa heroína junto da sua patroa durante oito meses e meio, herdando a padaria por morte da sua ama. Também se diz que foi libertada por não se provar este crime, mas, perante o caso de uma mulher disfarçada de homem para fugir à justiça pelo crime anterior, não é verisímil que a sua libertação fosse obra das autoridades.
Como se vê, até chegar a Aljubarrota, a vida da nossa popular heroína foi recheada de aventuras agitadas e o facto de vir a ser a proprietária da padaria por morte da sua patroa, é justificado da seguinte forma: o marido da velha padeira tinha sido feito cativo por piratas argelinos e Brites d’Almeida ter-lhe-á dado notícias do seu paradeiro, pelo que a patroa se afeiçoou tanto à sua criada que lhe doou o seu negócio.
Casou logo pouco depois da Batalha de Aljubarrota com um rico agricultor, morrendo provavelmente em 1393, de quem teve uma filha que, aquando da sua morte, teria cerca de seis anos. Morava na Rua Direita, numa casa pegada ao celeiro dos frades de Alcobaça que, após a sua morte, foi de uma mulher chamada Tubaroa, casa que depois se anexou ao celeiro.
Conta-se que já antes de Aljubarrota, Brites de Almeida manifestara o seu fervor patriótico e ódio aos castelhanos pois que juntamente com a multidão desordenada apedrejara, aquando do casamento ilícito de D. Fernando, o palácio de S. Martinho, em Lisboa; que se indignou quando soube do adultério de Leonor de Teles e que aplaudiu o Mestre d’Avis quando este matou o conde de Andeiro.
Encontrava-se, pois, Brites d’Almeida em Aljubarrota quando se deu a batalha. A tradição não diz que entrou nesta refrega, mas que foi após a vitória que se deu o feito histórico pelo qual se celebrizou. O confronto dos dois exércitos deu-se a onze quilómetros desta vila e, numa monografia de 1931, diz-se que «Durante a batalha de Aljubarrota, Brites de Almeida, por entre o povo da vila, assistia ansiosa ao desenrolar da batalha de qualquer ponto elevado das cercanias, e muito folgou ao ver a derrota dos espanhóis
Ao pressentirem a derrota, os castelhanos começaram a fugir em debandada e desordenadamente, e, esperando a oportunidade de escaparem com vida, passaram muitos deles pela povoação de Aljubarrota, procurando abrigo nas redondezas. A casa de Brites estava vazia e, (na opinião de outros) porque ela andava a ajudar nas escaramuças que ocorriam, sete deles esconderam-se no forno.
Ao regressar a casa encontrou a porta fechada e logo desconfiou da presença de inimigos. Entrou alvoraçada à procura e encontrando os homens, intimou-os a sair do forno e a renderem-se. Como estes fingissem dormir ou não entender, resolveu a questão matando-os à pazada. Dizem que tê-los-á cozido no seu forno, juntamente com pão com chouriço.
Diz-se também que depois disto, Brites d’Almeida constituiu uma milícia de mulheres para perseguir castelhanos, matando-os sem dó nem piedade.
A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira descreve este episódio histórico assim: «Na tarde da batalha de Aljubarrota, já derrotados os castelhanos, o povo perseguiu os fugitivos e Brites de Almeida capitaneou um troço de populares que se dedicaram a essa tarefa; diz a tradição que a padeira ao cair da noite encontrou escondidos no forno, que estava apagado, sete castelhanos que tentaram fugir ao populacho e que os matou
Uns dizem que Brites de Almeida viu  a batalha de fora, outros que ela com a sua pá se juntou ao exército português, mas numa coisa todos coincidem: foi com a sua pá que ela matou sete castelhanos que encontrou escondidos no seu forno, depois da vitória do lusos capitaneados pelo génio de Nuno Álvares Pereira.
Acerca da Padeira de Aljubarrota, Alexandre Herculano, escreveu: «Se a padeira de Aljubarrota é um mito, uma invenção popular do século XV, nem por isso a desprezemos. Um povo que dá a uma mulher ódio bastante contra os opressores estranhos para haver de matar a sangue frio sete desses inimigos; um povo que assim simbolizava o seu modo de sentir a tal respeito devia saber sustentar a independência nacional. Todavia não seremos nós que desterremos para o mundo dos fantasmas a famosa Brites de Almeida, forneira de Aljubarrota.» E continuando: «Este sucesso tradicional, quer real, quer fabuloso, tem em qualquer dos casos, um valor histórico, porque é um símbolo, uma expressão da ideia viva e geral aos portugueses daquele tempo, o ódio ao domínio estranho, o rancor com que todas as classes de indivíduos guerreavam aqueles que pretendiam sujeitá-los a esse domínio
Alguns escritores referem, talvez fantasiando, que a atestar o ódio contra os invasores, houve em Aljubarrota uma pequena calçada formada pelos ossos dos castelhanos mortos, e que esta com o passar do tempo foi mantida com ossadas de animais nos sítios danificados.
Dizem que a famosa pá, quando do período de 60 anos de domínio espanhol, entre 1580 a 1640, foi escondida numa das paredes dos Paços do Concelho. Apesar de muito procurada e insistentemente requisitada, nunca os espanhóis a descobriram e muito menos lhes foi entregue, com a desculpa de se não saber que destino tinha levado.
É muito possível que a Padeira de Aljubarrota seja uma criação até muito posterior à data da batalha e uma maneira de romancear uma vontade popular. Se tudo isto não é mais que uma heroína inventada e elevada à categoria de símbolo nacional, tal invenção não pode ser separada do descontentamento geral face à eminente perda da nossa soberania, e quando os castelhanos, ao darem a batalha como perdida, começaram a fugir em debandada, sendo perseguidos pelos aldeões locais, que entre esses aldeões estivesse uma padeira com a sua pá em riste, não é hipótese de todo impossível.
Fontes:
Portugal Antigo e Moderno, Volume Terceiro, págs. 146 e 147
http://www.jf-aljubarrota.pt/Padeira_de_Aljubarrota

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