sábado, 9 de fevereiro de 2013

A Alegoria da Caverna (Platão, 427-347 a.C.)

Escrita por Platão há vinte e quatro séculos, permanece muito importante e atual para nós porque nos diz o que é a condição humana.
Na Alegoria de Caverna, Platão evidencia as razões de tanta confusão acerca da justiça – e outras coisas – e justifica a necessidade da educação na criação de um novo cidadão, sem o qual não será possível construir um mundo mais justo.
Nesta alegoria, um diálogo metafórico entre Sócrates e Glauco, Platão resume a sua visão de uma humanidade ignorante, presa às suas sensações, ao imediatismo e inconsciente da sua limitada perspetiva. Só através de uma longa e difícil caminhada, alguns (poucos) “privilegiados” conseguem escapar às amarras dessa “caverna” e vão descobrindo outras dimensões mais completas e reais - os objetos, a fogueira – e, já fora da caverna encontram a verdadeira realidade, a origem e a explicação de tudo o que existe.
“- Imagina uns homens numa morada subterrânea em forma de caverna, cuja entrada, aberta à luz, se estende ao longo de toda a fachada; eles estão ali desde a infância, as pernas e o pescoço presos a correntes, de forma a que não podem mudar de lugar, nem olhar para outro lado senão em frente; porque os grilhões impedem-nos de virar a cabeça; a luz de uma fogueira acesa ao longe sobre uma elevação de terreno brilha atrás deles; entre o fogo e os prisioneiros há um caminho elevado; ao longo deste caminho imagina um pequeno muro, semelhante aos tabiques que os manobradores de marionetas levantam entre eles e o público e encima dos quais mostram as suas proezas.
- Vejo isso – disse ele.
- Imagina agora, ao longo deste pequeno muro, uns homens com toda a espécie de utensílios, que ultrapassam a altura do muro, e figuras de homens e animais, de pedras, de madeira, de toda a espécie de formas; e naturalmente entre os transportadores que desfilam, uns falam, outros não dizem nada.
- Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses- disse ele.
- Eles parecem-se connosco – respondi eu. – E em primeiro lugar, pensas que nesta situação eles pudessem ver de si mesmos e dos seus vizinhos qualquer outra coisa senão as sombras projetadas pelo fogo sobre a parte da caverna que está em frente deles?
- Poderia ser de outro modo – disse – se eles são obrigados a ficar com a cabeça imóvel durante toda a vida?
- E quanto aos objetos que desfilam, não acontece o mesmo?
- É forçoso.
- Desde logo, se pudessem conversar entre eles, não pensas que acreditariam nomear os próprios objetos reais, ao nomearem as sombras que veriam?
- Necessariamente.
- E se houvesse também um eco que reenviasse os sons do fundo da prisão, de todas as vezes que um dos passantes viesse a falar, não acreditas que eles tomariam a sua voz pela da sombra que desfilasse?
- Sim, por Zeus – disse.
- É indubitável – afirmei eu – que aos olhos daquelas pessoas a realidade não poderia ser outra coisa senão as sombras dos objetos confecionados.
- Não podia ser de outro modo – disse.
- Examina agora como eles reagiriam, se os livrassem das cadeias e os curassem da ignorância, e se as coisas se passassem naturalmente como se segue. Se um desses prisioneiros fosse libertado, e forçado subitamente a endireitar-se, a virar o pescoço, a andar, a levantar os olhos para a luz, todos estes movimentos fá-lo-iam sofrer, e o encandeamento impedi-lo-ia de olhar os objetos cujas sombras via há momentos. Pergunta-te o que poderá ele responder, se lhe disserem que, há momentos, ele apenas via nadas sem consistência mas que agora, mais perto da realidade e encarando objetos mais reais, ele vê mais corretamente; se por fim, ao mostrarem-lhe cada um dos objetos que desfilam diante dele, o obrigam com perguntas a dizer o que é. Não crês que ficaria embaraçado e que os objetos que ele via há momentos lhe parecerão mais verdadeiros do que aqueles que lhe mostram agora?
- Muito mais verdadeiros – disse.
- E se o forçassem a olhar a própria luz, não crês que os olhos lhe doeriam e que se desviaria e se voltaria para as coisas que ele pode olhar, e que as julgaria realmente mais distintas do que aquelas que lhe mostram?
- Acredito – anuiu.
- E se – continuei – o forçassem a sair de lá, se o fizessem subir a elevação rude e escarpada, e se o não largassem até que o tivessem arrastado à luz do Sol, não pensas que ele sofreria e se revoltaria ao ser arrastado desse modo, e que, uma vez chegado à luz, ele teria os olhos encandeados pelo seu brilho, e não poderia ver objeto algum dos que nós chamamos agora verdadeiros?
- Ele não poderia – disse –, pelo menos imediatamente.
- Com efeito – voltei eu –, ele teria de se habituar, se quisesse ver o mundo superior. Inicialmente, o que ele olharia mais facilmente seriam as sombras, depois as imagens dos homens e outros objetos refletidos nas águas, depois os próprios objetos; depois, erguendo o olhar para a luz dos astros e da Lua, ele contemplaria durante a noite as constelações e o próprio firmamento mais facilmente do que o faria durante o dia, ao Sol e ao brilho do Sol.
- Provavelmente.
- Por fim, penso, seria o Sol, não as águas, nem as suas próprias imagens refletidas em qualquer outro ponto, mas o próprio Sol na sua própria permanência, que ele poderia olhar e contemplar tal como é.
- Necessariamente – disse.
- Depois disso, acabaria por concluir, quanto ao Sol, que ele é quem produz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que é de qualquer modo c causa de todas as coisas que ele e os seus companheiros viam na caverna.
- É evidente – disse – que ele chegaria aí depois das suas diversas experiências.
- Se depois ele pensasse na sua primeira morada e na ciência que aí existe, e se pensasse nos companheiros de cativeiro, não acreditas que se felicitaria da mudança e teria pena deles?
- É certo que sim. (…)
- Imagina ainda o seguinte – prossegui eu. – Se o nosso homem voltasse a descer e retomasse o seu antigo lugar, não teria os olhos ofuscados pelas trevas, ao vir bruscamente do Sol?
Certamente que sim – disse.
- E se fosse preciso de novo julgar daquelas sombras e concorrer com os companheiros que nunca deixaram as suas correntes, enquanto a sua vista está ainda perturbada e antes que os seus olhos se tenham recomposto e acostumado à obscuridade, o que exigiria um tempo bastante longo, não se prestaria ao riso e não diriam dele que, por ter subido ao cimo, voltou de lá com os olhos doentes, que até nem valia a pena tentar a ascensão; e, se alguém tentasse libertá-los e conduzi-los para cima, se se pudessem agarra e matar, não matariam?
- Certamente que o matariam – disse
- Agora – prossegui eu – é preciso, meu caro Gláucon, aplicar exatamente esta imagem ao que dissemos atrás: é preciso associar o mundo visível à permanência na prisão, e a luz do fogo com que ela é iluminada, ao efeito do Sol; quanto à subida até ao mundo superior e à contemplação das suas maravilhas, vê nisso a subida da alma ao mundo inteligível, e não te enganarás quanto ao meu pensamento, pois que o desejas conhecer. Deus sabe se ele é verdadeiro; de qualquer modo, é minha opinião que nos limites do mundo inteligível está a ideia do bem, de que nos apercebemos com dificuldade, mas que não nos podemos aperceber sem concluir que ela é a causa universal de tudo o que há nele de bem e de Belo; que, no mundo visível, foi ela que criou a luz e a distribui; e que, no mundo inteligível, é ela que distribui e faz obter a verdade e a inteligência, e que é preciso vê-la para se ter uma conduta com sabedoria tanto na vida privada como na vida pública.”
A caverna é a metáfora para o mundo físico em que nos encontramos juntamente com a fogueira e os objetos. Como prisioneiros nem sequer podemos “ver” o nosso próprio corpo ou o das outras pessoas e, inevitavelmente, confundimos as sombras e os ecos refletidos na parede com a própria realidade, pois não conhecemos outra.
É esta a condição humana. Nascemos numa confortável escravatura de ignorância da qual, sem ajuda, dificilmente tomámos consciência e distinguimos a realidade (verdade) da ilusão. E a maioria de nós sente-se tão bem nesta ignorância que não quer sequer mudar.
Na medida em que não estamos dispostos a pensar por nós próprios, a raciocinar, e nos deixamos levar por aquilo que querem que pensemos, acabamos por ser controlados pelos hábitos e opiniões que nos inculcam, por ser “escravos” de ideias feitas.
A forma de nos libertarmos desta “escravatura” passa por quebrar as correntes que nos tolhem o pensamento e seguir em direção à luz (saber), na procura da realidade (verdade) distinguindo-a da ilusão, passa pela nossa emancipação.
É-nos difícil sair da “caverna” (ignorância), porque a viagem nos obriga a subir em direção à luz (sabedoria), o que implica questionar as nossas crenças mais básicas e que nos parecem dados adquiridos e inquestionáveis. Porque temos de enfrentar a incompreensão dos outros, daqueles que se satisfazem com ideias feitas. E é difícil também porque exige disciplina intelectual, esforço (físico) e autocrítica. Porque examinar as nossas crenças exige uma atitude crítica que coloca dúvidas sobre o que nos habituamos a considerar verdadeiro, e podemos chegar a conclusões que a maioria dos membros da sociedade desaprova: a religião; será que Deus existe? A vida para além da morte; que razões temos para acreditar nisso? O que é uma sociedade justa? Devemos obedecer a quem nos governa? O Estado é uma instituição necessária? Questões que podem ser consideradas como desafios às ideias estabelecidas e como falta de respeito por aquilo que a tradição definiu.
E enfrentar a realidade, o passar para além das “sombras” da nossa existência atual, o enfrentar a verdade que só conhecíamos através dessas sombras, provoca-nos “as dores musculares e nos olhos” que a imobilidade e a escuridão a que estávamos habituados nos condicionou. E o deslumbramento das figuras em contraluz, como que nos cega impedindo-nos de ver direito qualquer coisa, mesmo até as próprias sombras que até aqui podíamos ver e eram as únicas coisas que tínhamos. Confunde-nos, criando resistências à emancipação, convidando à “escravidão” donde provínhamos. Esta resistência à mudança é por vezes tão forte, o sofrimento e a angústia são tais que temos que ser forçados a enfrentar a verdadeira realidade.
Todos nós almejamos o conforto e a segurança de um mundo fácil, simples, com poucos problemas, de solução fácil, compreensiva, aparentemente correta e aceite por todos, como no “paraíso original” da caverna. Mas é uma situação falsa, ilusória e só pode ser o paraíso dos tolos!
Mas viver na “caverna” é viver na escuridão onde somos condicionados àquilo que nos é mostrado, inculcado nas nossas mentes, sem perspetivas. Onde nada mais parece existir para além da realidade que vemos, desconhecendo a realidade dos outros e onde cada um se desconhece a si próprio. A condição humana é de auto escravatura que as pessoas confundem com liberdade. Na Alegoria da Caverna os prisioneiros pensam que são livres, que compreendem o seu mundo. Mas nós que os observamos do lado de fora podemos ver o quanto estão enganados. Mas eles, para nosso espanto, agarram-se às suas “correntes” convencidos que o que veem é a própria realidade.
A busca de novas perspetivas é um processo lento e gradual em que nos vamos expondo à verdade. O primeiro passo é o reconhecimento da natureza incompleta deste mundo de ilusões. Inicialmente, pelas limitações próprias, a forma como vemos o mundo faz algum sentido. Mas pouco a pouco, à medida que somos “libertados” e levados a ver o mundo com outra luz, vamos percebendo que esta nova forma faz mais sentido. Vamo-nos tornando seres mais conscientes do mundo que nos rodeia.
Educação é liberdade, emancipação. E um ser emancipado é um ser livre, autónomo, capaz de decidir por si próprio, de assumir os seus atos, consciente dos seus direitos e também dos seus deveres. Um cidadão livre é também um cidadão responsável.

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