A revolução Industrial Inglesa é uma das melhores
sínteses da rutura de um tempo social e consequente surgimento de uma nova
temporalidade. Nas sociedades mais tradicionais e de maior predominância
agrícola, a medida do tempo estava orientada pela tarefa. O tempo tinha um
carácter muito mais qualitativo, orientado pelas atividades, mas a
industrialização rompe com essa ideia. A introdução do “industrialismo” operou
uma mudança que levou a que as tarefas executadas durante o trabalho passassem
a ser controladas pelo tempo.
De forma determinante, a opção pelo tempo como medida
de valor, vincula-o diretamente à questão do dinheiro. O tempo torna-se assim,
uma moeda. A transformação operada na vinculação tempo x trabalho aponta para
uma alteração de sentido em ambas as categorias. Se por um lado o tempo passa a
ser visto como uma grandeza que deve ser controlada com rigidez, o trabalho
também muda de perspetiva, já que o controle do tempo dedicado ao trabalho
saído do ritmo natural que havia marcado as sociedades tradicionais passa a ser
submetido a um tempo mecânico, controlado pelo relógio. O estabelecimento da
indústria rompe com a relação próxima entre o tempo de trabalho e a própria
vida. Um dado claro que acentua essa transformação pode ser pensado também com
relação à espacialidade laboral. Nas sociedades pré-industriais não havia uma
especialização entre o espaço de trabalho e o espaço privado. Tomando como
referência os agricultores, havia uma contiguidade espacial entre o campo, que
cultivavam, e sua habitação rural.
Dessa forma a indiferenciação espacial, ou seja, a
contiguidade do território implica uma referência pouco relevante de distinção
entre os tempos sociais que compunham as sociedades pré-industriais, uma vez
que a proximidade permitia a alternância de ações de trabalho e de vida sem
profundas ruturas.
O tempo é uma instituição social e cultural, que
ultrapassa a compreensão do tempo astronómico e físico e se insere na ideia de
expressão fundamental da vida social.
As teorias
dos tempos sociais defendem a ideia de que cada coletividade ou sociedade
desenvolve referentes próprios de temporalidade que organizam o seu
funcionamento. Para tanto, estabelecem que em cada momento histórico, há o
predomínio de uma atividade social, que regula essa estruturação social. A
ideia de um domínio de atividade social explica, de certa forma, o modo de
produção, as regras de organização e as principais atividades que essa produção
requer.
É
fundamentalmente essa ideia de dominância que leva à afirmação de que, ao longo
dos dois últimos séculos, vivemos de forma nítida numa “sociedade do trabalho”,
uma vez que seria essa actividade social a responsável pela orientação da
organização social das sociedades ocidentais contemporâneas, reconhecendo a
referência temporal como mediadora dessa estruturação.
Ao longo
dos últimos anos, porém, essa hegemonia temporal do trabalho passou a ser posta
em questão, tendo por parâmetro básico um discurso difundido, tantos nos meios
académicos como nos média, sobre o “fim do trabalho”. Ainda que se reconheça
que falar do fim do trabalho seja algo precipitado ou até suspeito, uma
evidência está clara: a organização laboral, que vigorou principalmente ao
longo do século XX, parece perder a sua hegemonia. Como pensar a temporalidade
laboral, diante de um quadro de profunda transformação do mundo do trabalho?
A
temporalidade das sociedades ocidentais no último século, tal como foi
constituída, reconhecia no trabalho e no tempo industrial os seus mais
significativos elementos da composição do quadro temporal. Entretanto, as
transformações induzidas pelos fatores tecnológicos, económicos, culturais e
político-institucionais, ao longo das últimas décadas do século passado,
tiveram repercussão directa na alteração da relação “tempo x trabalho”.
Essas transformações levaram ao aparecimento de uma série de ideias sobre a
perda da hegemonia do trabalho como atividade dominante e determinante dos
quadros temporais das sociedades.
Um dos
aspetos fundamentais na conceção do trabalho, que prevaleceu ao longo do século
XX, foi a compreensão da sociedade salarial criada no seio do Estado de Bem-Estar.
A modernização da indústria, acompanhada de uma forte reação por parte dos
trabalhadores diante das condições de profunda exploração engendradas pela
indústria, foi um elemento decisivo para mudar a noção de trabalho que, até
então, dominava o cenário sócio laboral. As reações às extensas horas de
trabalho e às precárias condições do seu exercício, constituíram, aos poucos,
argumentos para a abertura de negociação entre os detentores do capital e os
detentores da força de trabalho, intermediados pelo Estado, que reconhecia,
assim, o seu caráter social, sem perder, no entanto, o seu papel de
responsabilidade em impulsionar o progresso e o desenvolvimento económico, num
cenário marcado por uma crescente competição produtiva. Os direitos e garantias
sociais constituíram a outra face de uma relação, onde o trabalho e a
remuneração financeira a ele associado, eram insuficientes como parâmetros fundamentais
para dar sentido à sociedade salarial. A partir daí, surge a ideia do
crescimento económico, acompanhado do crescimento do Estado Social.
Dentro
deste contexto, ficava claro que a temporalidade, associada à ideia de
jornadas, passava a constituir um elemento de reivindicação, procurando de
alguma forma resgatar algo de autonomia e liberdade, para um sujeito alienado
pela expropriação gerada pelo modelo típico do capitalismo industrial. Esse
reconhecimento pode parecer contraditório, pois revela que o trabalho, tal como
estava qualificado no modelo industrial, teria evidenciado muito mais o seu caráter
instrumental e, ao ocupar uma parcela significativa do quadro temporal, tornava
inviável o exercício da expressão autónoma do sujeito. Sendo assim, a
libertação do tempo teria por objetivo a vivência da sua autonomia noutras
esferas e atividades sociais. É lógico que esse pensamento não era unânime e
também sobressaía a ideia da limitação física do ser humano, para reivindicar a
diminuição do tempo dedicado ao trabalho.
Parece
ser importante reconhecer que o desenvolvimento de atividades voltadas para o
consumo de bens e serviços, geradas pelo capital, prescindia do tempo, de forma
que o aumento da produtividade dependia, fundamentalmente, do aumento do
consumo. A ideia de que a necessidade de consumo implica tempo, proporciona uma
nova (outra) relação com a temporalidade. A própria indústria necessitava, de
alguma forma, produzir um novo tipo de bem para garantir o consumo de seus
produtos: o tempo.
As
características que marcam o domínio do tempo de trabalho podem ser
compreendidas através de um duplo foco, um mais quantitativo, que implica a
diminuição crescente do tempo cronológico dedicado ao trabalho, mas também
através de uma reconfiguração das características que estiveram vinculadas à
temporalidade laboral, tais como a regularidade, a homogeneidade, o caráter
mecânico e quantitativo, a linearidade, além do seu sentido abstrato e
exterior.
A
verificação do declínio da hegemonia do tempo dominante do trabalho, segundo
Sue (1995), pode ser analisada através de uma constatação quantitativa sob uma
tripla dimensão: (a) a redução da jornada laboral; (b) a redução do tempo total
de trabalho com relação ao ciclo de vida; e, (c) a redução do tempo de trabalho
vinculado ao que ele denomina de vida ativa.
É
importante a análise da diminuição quantitativa do tempo de trabalho, porque, e
seguindo a lógica do mecanismo de produção de um novo tempo dominante proposto
pelo próprio Sue, pouco a pouco começam a aparecer outras atividades com
temporalidades distintas e que terminam por se tornar autónomas, frente ao
domínio da temporalidade vigente. Ao longo de todo século XX e em função das
mudanças produzidas na organização produtiva, essas atividades foram-se configurando
e constituindo espaços relativamente autónomos frente à temporalidade laboral.
No
âmbito quantitativo, a redução da duração do trabalho advém principalmente,
segundo Husson (1998), dos ganhos e do incremento da produtividade, que ele
explica por meio de uma relação extremamente simplificada, mas que é tomada
como uma taxa de crescimento: Emprego = produção - produtividade horária - duração
do trabalho.
Contudo,
a diminuição das jornadas laborais não é um dado isolado, na perspetiva da
redução do tempo de trabalho; a ela está associada também uma diminuição da
chamada “vida ativa”, ou seja, um aumento da expectativa de vida, associado a
um aumento da extensão da escolaridade e uma redução da idade de reforma,
características que têm a sua origem na política de direitos e garantias pelo
Estado de Bem-Estar. Não é possível esquecer, também, que os lucros obtidos não
constituem um processo linear de redução do tempo de trabalho, mas que se
inserem numa série de lutas e conquistas sociais, que foram posteriormente
transformadas em leis e formas reguladas de integrar os trabalhadores.
Nas
primeiras décadas do século XX, as mudanças na esfera do trabalho estavam
profundamente marcadas pelos avanços tecnológicos e transformações geradas nos
processos produtivos, para atender aos ganhos na produtividade. A verdadeira
“obsessão” da produtividade gera o aumento da amplitude do processo de produção
e termina por viabilizar o desenvolvimento do setor de serviços, em especial
das atividades administrativas e de distribuição, espaço onde a ideia de
produção em série e de economia do tempo não tinha, então, a mesma expressão
que na indústria.
O
crescimento do setor de serviços representa uma transformação da realidade
produtiva e serve de referência, inclusive, para a precipitação das primeiras
ideias do afrouxamento, ou mesmo “'fim”, do modelo industrial. As
características mecânicas, homogéneas e quantitativas, entre outras, que
marcavam o modelo de temporalidade industrial, já não se mostravam as mais
adequadas nesse novo cenário, onde os serviços adquiriam relevo e anunciavam a
necessidade de emergência de um novo modelo produtivo.
Se, por
um lado, na indústria, a tecnologia tem por meta substituir uma parcela
significativa do trabalho, por outro lado, os bens produzidos em determinados
setores dessa mesma indústria começavam a substituir os trabalhos e serviços
domésticos. Surge uma verdadeira batalha pela redução do tempo de trabalho, mas
que acaba por constituir um grande paradoxo, já que libertar o tempo de trabalho
implica um esforço em produzir novas formas de ocupar o tempo livre. O tempo,
mesmo não estando submetido à lógica do modelo dos primeiros momentos da
industrialização, continua uma obsessão permanente, ou seja, a necessidade de
controlar o tempo mantém-se como desafio do homem e como forma de incorporar
valor à estrutura do capital.
“Obter ganhos massivos de tempo nos serviços
mais monótonos, substituí-los com novos objetos que se podem armazenar e
utilizar simultaneamente, automatizar a gestão das informações, são caminhos
para prolongar o tempo das máquinas. Tudo isso desemboca num novo modo de
pensar o tempo, de medi-lo e de datar as violências permitidas... com o fim de
libertar tempo para novos objetos, o tempo acumulado é brutalmente destruído, pela
inflação, as dispensas, a quebra, que são formas monetárias de sacrifícios e
carnavais fugazes” (Attali,
1985, p. 234).
No
âmbito da evolução tecnológica, a “economia de trabalho”, que surge do emprego
de máquinas e tecnologias quase sempre automatizadas e de alto custo, gera a
necessidade do incremento da sua utilização, como forma de garantir os custos
empregados na sua aquisição (investimento). Como resultado dessa utilização mais
produtiva, são criados horários atípicos dentro padrão clássico da tradição
industrial, tais como turnos à noite e fins-de-semana, introduzindo a ideia de
trabalho contínuo. Ainda com base no avanço tecnológico, pode ser notado que,
principalmente através da informatização e do emprego de alta intensidade de
informação, a ideia de linha de montagem deixou de ser hegemónica no modelo
industrial. Surge a possibilidade de romper a sincronia e dissociar tempos
relativos aos processos de produção. A utilização de tal premissa, de forma
mais intensiva na atividade de serviços, é um dos traços importantes da
transformação do trabalho, a partir da década de 1980.
A partir
do final de 1970, com a chamada “crise do petróleo”, as novas relações que se
estabelecem entre os países revelam uma reconfiguração entre a organização
produtiva e o ambiente organizacional externo, gerando desafios permanentes de
adaptação das empresas a uma tendência de mundialização da economia e a uma
instabilidade generalizada.
As
distintas políticas levadas a cabo pelos diferentes países em termos de
regulação das matérias sobre o trabalho, assim como a participação das lutas
sindicais e as negociações coletivas, compõem um quadro geral que contribui
para a compreensão da relação entre trabalho e temporalidade, ao longo do
século XX.
A
articulação entre as dimensões temporais, a partir dos processos de transformações
produtivas, conduz à compreensão de que a redução quantitativa do tempo de
trabalho está fortemente marcada pela adoção de políticas de flexibilização do
tempo laboral. Assim, o modelo industrial tradicional dá origem a uma
multiplicidade de formas de trabalho e inserções laborais, onde os aspetos
fundamentais, que caracterizam a sociedade salarial ocidental capitalista – o contrato
de trabalho de duração indeterminada, tempo integral, período diurno, horário
fixo, semana de cinco ou seis dias – são substituídas por contratos e horários
atípicos. A multiplicação das formas de articulação entre tempo e trabalho
parece ser a característica mais evidente dessa nova etapa de transformação
social.
Sem
dúvida, a discussão sobre os efeitos da tecnologia, não apenas na substituição
dos trabalhos mais pesados e degradantes, mas também como fator de diminuição
das oportunidades de emprego, é um tema que requer uma reflexão bastante
profunda. Castells (1999), concebe a tecnologia não como um fenómeno natural
mas social, não admitindo que haja um vínculo entre o desemprego estrutural e
as novas tecnologias, mas que essa relação está na dependência direta da forma
como é gerida. Entretanto, o desenvolvimento tecnológico tem um impacto direto
na reconfiguração laboral, e é esse aspeto que sobressai na relação dos
vínculos entre temporalidade e trabalho. A tecnologia interfere na relação
espácio-temporal do trabalho, como afirma Gasparini (1996), e também força o
aparecimento de novas formas de trabalho, já não tão vinculadas ao modelo
taylorista-fordista do princípio do século XX. As alterações operadas pela
tecnologia têm repercussão na conceção de tempo vinculada ao trabalho.
Analisando
as transformações da temporalidade industrial, é importante reconhecer na
desregulação do trabalho e na introdução do trabalho a tampo parcial ou
contratos por tempo determinado, uma das mais importantes evidências da
diminuição do tempo de trabalho. Uusson (1998) afirma que, durante a década de
1990, entre os países que compõem a Comunidade Europeia, os trabalhos a tempo parcial
subiram de 10,9% para 15,5% dos ativos. Dados preliminares, publicados pelo
Centro de Investigación Sociológico – CIS da Espanha, indicam que, em 2004,
esse número já se aproximava dos 20%. Parece não haver dúvida que a ideia de
trabalho a tempo parcial está vinculada, tanto à pressão exercida pela necessidade
de flexibilizar a produção, cada vez mais dependente das flutuações externas,
como pelo modelo de inserção laboral feminino, também já aludido por Antunes
(1999). O trabalho a tempo parcial completa muitas formas de vinculação laboral,
como os estágios de jovens estudantes, a meia jornada, os contratos sazonais,
entre outros, mas a participação no mercado laboral do contingente feminino é
um dado, por si, significativo. Não pelo que representou o ingresso das mulheres
no mercado de trabalho, mas pelo modelo que a ele se associou e que começa a
ser generalizado.
Um dos
fatores que está diretamente relacionado com a noção de trabalho a tempo
parcial, é que ele surge como um mecanismo de redistribuição do emprego, ou
seja, a redução do tempo de trabalho e sua consequente transformação em
jornadas parciais, utilizadas como uma proposta de enfrentar a redução da
capacidade de gerar novos postos no mercado de trabalho. A perspetiva da
precarização do trabalho é, portanto, outra das muitas características que
surgem no seio da relação entre temporalidade e trabalho.
O estudo das novas formas de vínculo entre tempo e
trabalho viabiliza e adquire o perfil de mais um elemento no estudo da
contemporaneidade laboral. As decisões estratégicas, tomadas pelos países
industriais do ocidente, privilegiam as novas políticas de organização
produtiva, em detrimento de políticas sociais, levando a um abrandamento
progressivo do conjunto das políticas que marcaram o Estado de Bem-Estar.
Reconhecidamente, o liberalismo crescente das práticas económicas promoveu uma
mercantilização das relações sociais e atuou de forma decisiva sobre as esferas
das relações laborais e da prática social. Neste novo cenário, que está ainda
em processo de construção, é difícil precisar os efeitos a longo prazo. Há,
contudo, duas evidências diretamente vinculadas ao trabalho, já perfeitamente
identificáveis: um aumento considerável do desemprego, numa perspetiva
estrutural, e uma considerável precarização laboral.
A temporalidade constitui um fator preponderante para revelar essas
evidências. Daí o empenho em aprofundarmos seu papel no estudo do mundo do
trabalho. Os novos modos de inserção laboral estão pautados por regras de tempo
cada vez mais distintas daquele que dominou a chamada sociedade industrial. Por
isso, há a necessidade de investigar o que significa para o trabalhador aspetos
que marcam a precarização laboral e que trazem no tempo o substantivo da sua
realidade – jornadas parciais, contratos por tempo definido e insegurança do
trabalho e do emprego.
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