sábado, 12 de janeiro de 2013

Temporalidade espacial




A revolução Industrial Inglesa é uma das melhores sínteses da rutura de um tempo social e consequente surgimento de uma nova temporalidade. Nas sociedades mais tradicionais e de maior predominância agrícola, a medida do tempo estava orientada pela tarefa. O tempo tinha um carácter muito mais qualitativo, orientado pelas atividades, mas a industrialização rompe com essa ideia. A introdução do “industrialismo” operou uma mudança que levou a que as tarefas executadas durante o trabalho passassem a ser controladas pelo tempo.
De forma determinante, a opção pelo tempo como medida de valor, vincula-o diretamente à questão do dinheiro. O tempo torna-se assim, uma moeda. A transformação operada na vinculação tempo x trabalho aponta para uma alteração de sentido em ambas as categorias. Se por um lado o tempo passa a ser visto como uma grandeza que deve ser controlada com rigidez, o trabalho também muda de perspetiva, já que o controle do tempo dedicado ao trabalho saído do ritmo natural que havia marcado as sociedades tradicionais passa a ser submetido a um tempo mecânico, controlado pelo relógio. O estabelecimento da indústria rompe com a relação próxima entre o tempo de trabalho e a própria vida. Um dado claro que acentua essa transformação pode ser pensado também com relação à espacialidade laboral. Nas sociedades pré-industriais não havia uma especialização entre o espaço de trabalho e o espaço privado. Tomando como referência os agricultores, havia uma contiguidade espacial entre o campo, que cultivavam, e sua habitação rural.
Dessa forma a indiferenciação espacial, ou seja, a contiguidade do território implica uma referência pouco relevante de distinção entre os tempos sociais que compunham as sociedades pré-industriais, uma vez que a proximidade permitia a alternância de ações de trabalho e de vida sem profundas ruturas.
O tempo é uma instituição social e cultural, que ultrapassa a compreensão do tempo astronómico e físico e se insere na ideia de expressão fundamental da vida social.
As teorias dos tempos sociais defendem a ideia de que cada coletividade ou sociedade desenvolve referentes próprios de temporalidade que organizam o seu funcionamento. Para tanto, estabelecem que em cada momento histórico, há o predomínio de uma atividade social, que regula essa estruturação social. A ideia de um domínio de atividade social explica, de certa forma, o modo de produção, as regras de organização e as principais atividades que essa produção requer.
É fundamentalmente essa ideia de dominância que leva à afirmação de que, ao longo dos dois últimos séculos, vivemos de forma nítida numa “sociedade do trabalho”, uma vez que seria essa actividade social a responsável pela orientação da organização social das sociedades ocidentais contemporâneas, reconhecendo a referência temporal como mediadora dessa estruturação.
Ao longo dos últimos anos, porém, essa hegemonia temporal do trabalho passou a ser posta em questão, tendo por parâmetro básico um discurso difundido, tantos nos meios académicos como nos média, sobre o “fim do trabalho”. Ainda que se reconheça que falar do fim do trabalho seja algo precipitado ou até suspeito, uma evidência está clara: a organização laboral, que vigorou principalmente ao longo do século XX, parece perder a sua hegemonia. Como pensar a temporalidade laboral, diante de um quadro de profunda transformação do mundo do trabalho?
A temporalidade das sociedades ocidentais no último século, tal como foi constituída, reconhecia no trabalho e no tempo industrial os seus mais significativos elementos da composição do quadro temporal. Entretanto, as transformações induzidas pelos fatores tecnológicos, económicos, culturais e político-institucionais, ao longo das últimas décadas do século passado, tiveram repercussão directa na alteração da relação “tempo x trabalho”. Essas transformações levaram ao aparecimento de uma série de ideias sobre a perda da hegemonia do trabalho como atividade dominante e determinante dos quadros temporais das sociedades.
Um dos aspetos fundamentais na conceção do trabalho, que prevaleceu ao longo do século XX, foi a compreensão da sociedade salarial criada no seio do Estado de Bem-Estar. A modernização da indústria, acompanhada de uma forte reação por parte dos trabalhadores diante das condições de profunda exploração engendradas pela indústria, foi um elemento decisivo para mudar a noção de trabalho que, até então, dominava o cenário sócio laboral. As reações às extensas horas de trabalho e às precárias condições do seu exercício, constituíram, aos poucos, argumentos para a abertura de negociação entre os detentores do capital e os detentores da força de trabalho, intermediados pelo Estado, que reconhecia, assim, o seu caráter social, sem perder, no entanto, o seu papel de responsabilidade em impulsionar o progresso e o desenvolvimento económico, num cenário marcado por uma crescente competição produtiva. Os direitos e garantias sociais constituíram a outra face de uma relação, onde o trabalho e a remuneração financeira a ele associado, eram insuficientes como parâmetros fundamentais para dar sentido à sociedade salarial. A partir daí, surge a ideia do crescimento económico, acompanhado do crescimento do Estado Social.
Dentro deste contexto, ficava claro que a temporalidade, associada à ideia de jornadas, passava a constituir um elemento de reivindicação, procurando de alguma forma resgatar algo de autonomia e liberdade, para um sujeito alienado pela expropriação gerada pelo modelo típico do capitalismo industrial. Esse reconhecimento pode parecer contraditório, pois revela que o trabalho, tal como estava qualificado no modelo industrial, teria evidenciado muito mais o seu caráter instrumental e, ao ocupar uma parcela significativa do quadro temporal, tornava inviável o exercício da expressão autónoma do sujeito. Sendo assim, a libertação do tempo teria por objetivo a vivência da sua autonomia noutras esferas e atividades sociais. É lógico que esse pensamento não era unânime e também sobressaía a ideia da limitação física do ser humano, para reivindicar a diminuição do tempo dedicado ao trabalho.
Parece ser importante reconhecer que o desenvolvimento de atividades voltadas para o consumo de bens e serviços, geradas pelo capital, prescindia do tempo, de forma que o aumento da produtividade dependia, fundamentalmente, do aumento do consumo. A ideia de que a necessidade de consumo implica tempo, proporciona uma nova (outra) relação com a temporalidade. A própria indústria necessitava, de alguma forma, produzir um novo tipo de bem para garantir o consumo de seus produtos: o tempo.
As características que marcam o domínio do tempo de trabalho podem ser compreendidas através de um duplo foco, um mais quantitativo, que implica a diminuição crescente do tempo cronológico dedicado ao trabalho, mas também através de uma reconfiguração das características que estiveram vinculadas à temporalidade laboral, tais como a regularidade, a homogeneidade, o caráter mecânico e quantitativo, a linearidade, além do seu sentido abstrato e exterior.
A verificação do declínio da hegemonia do tempo dominante do trabalho, segundo Sue (1995), pode ser analisada através de uma constatação quantitativa sob uma tripla dimensão: (a) a redução da jornada laboral; (b) a redução do tempo total de trabalho com relação ao ciclo de vida; e, (c) a redução do tempo de trabalho vinculado ao que ele denomina de vida ativa.
É importante a análise da diminuição quantitativa do tempo de trabalho, porque, e seguindo a lógica do mecanismo de produção de um novo tempo dominante proposto pelo próprio Sue, pouco a pouco começam a aparecer outras atividades com temporalidades distintas e que terminam por se tornar autónomas, frente ao domínio da temporalidade vigente. Ao longo de todo século XX e em função das mudanças produzidas na organização produtiva, essas atividades foram-se configurando e constituindo espaços relativamente autónomos frente à temporalidade laboral.
No âmbito quantitativo, a redução da duração do trabalho advém principalmente, segundo Husson (1998), dos ganhos e do incremento da produtividade, que ele explica por meio de uma relação extremamente simplificada, mas que é tomada como uma taxa de crescimento: Emprego = produção - produtividade horária - duração do trabalho.
Contudo, a diminuição das jornadas laborais não é um dado isolado, na perspetiva da redução do tempo de trabalho; a ela está associada também uma diminuição da chamada “vida ativa”, ou seja, um aumento da expectativa de vida, associado a um aumento da extensão da escolaridade e uma redução da idade de reforma, características que têm a sua origem na política de direitos e garantias pelo Estado de Bem-Estar. Não é possível esquecer, também, que os lucros obtidos não constituem um processo linear de redução do tempo de trabalho, mas que se inserem numa série de lutas e conquistas sociais, que foram posteriormente transformadas em leis e formas reguladas de integrar os trabalhadores.
Nas primeiras décadas do século XX, as mudanças na esfera do trabalho estavam profundamente marcadas pelos avanços tecnológicos e transformações geradas nos processos produtivos, para atender aos ganhos na produtividade. A verdadeira “obsessão” da produtividade gera o aumento da amplitude do processo de produção e termina por viabilizar o desenvolvimento do setor de serviços, em especial das atividades administrativas e de distribuição, espaço onde a ideia de produção em série e de economia do tempo não tinha, então, a mesma expressão que na indústria.
O crescimento do setor de serviços representa uma transformação da realidade produtiva e serve de referência, inclusive, para a precipitação das primeiras ideias do afrouxamento, ou mesmo “'fim”, do modelo industrial. As características mecânicas, homogéneas e quantitativas, entre outras, que marcavam o modelo de temporalidade industrial, já não se mostravam as mais adequadas nesse novo cenário, onde os serviços adquiriam relevo e anunciavam a necessidade de emergência de um novo modelo produtivo.
Se, por um lado, na indústria, a tecnologia tem por meta substituir uma parcela significativa do trabalho, por outro lado, os bens produzidos em determinados setores dessa mesma indústria começavam a substituir os trabalhos e serviços domésticos. Surge uma verdadeira batalha pela redução do tempo de trabalho, mas que acaba por constituir um grande paradoxo, já que libertar o tempo de trabalho implica um esforço em produzir novas formas de ocupar o tempo livre. O tempo, mesmo não estando submetido à lógica do modelo dos primeiros momentos da industrialização, continua uma obsessão permanente, ou seja, a necessidade de controlar o tempo mantém-se como desafio do homem e como forma de incorporar valor à estrutura do capital.
Obter ganhos massivos de tempo nos serviços mais monótonos, substituí-los com novos objetos que se podem armazenar e utilizar simultaneamente, automatizar a gestão das informações, são caminhos para prolongar o tempo das máquinas. Tudo isso desemboca num novo modo de pensar o tempo, de medi-lo e de datar as violências permitidas... com o fim de libertar tempo para novos objetos, o tempo acumulado é brutalmente destruído, pela inflação, as dispensas, a quebra, que são formas monetárias de sacrifícios e carnavais fugazes (Attali, 1985, p. 234).
No âmbito da evolução tecnológica, a “economia de trabalho”, que surge do emprego de máquinas e tecnologias quase sempre automatizadas e de alto custo, gera a necessidade do incremento da sua utilização, como forma de garantir os custos empregados na sua aquisição (investimento). Como resultado dessa utilização mais produtiva, são criados horários atípicos dentro padrão clássico da tradição industrial, tais como turnos à noite e fins-de-semana, introduzindo a ideia de trabalho contínuo. Ainda com base no avanço tecnológico, pode ser notado que, principalmente através da informatização e do emprego de alta intensidade de informação, a ideia de linha de montagem deixou de ser hegemónica no modelo industrial. Surge a possibilidade de romper a sincronia e dissociar tempos relativos aos processos de produção. A utilização de tal premissa, de forma mais intensiva na atividade de serviços, é um dos traços importantes da transformação do trabalho, a partir da década de 1980.
A partir do final de 1970, com a chamada “crise do petróleo”, as novas relações que se estabelecem entre os países revelam uma reconfiguração entre a organização produtiva e o ambiente organizacional externo, gerando desafios permanentes de adaptação das empresas a uma tendência de mundialização da economia e a uma instabilidade generalizada.
As distintas políticas levadas a cabo pelos diferentes países em termos de regulação das matérias sobre o trabalho, assim como a participação das lutas sindicais e as negociações coletivas, compõem um quadro geral que contribui para a compreensão da relação entre trabalho e temporalidade, ao longo do século XX.
A articulação entre as dimensões temporais, a partir dos processos de transformações produtivas, conduz à compreensão de que a redução quantitativa do tempo de trabalho está fortemente marcada pela adoção de políticas de flexibilização do tempo laboral. Assim, o modelo industrial tradicional dá origem a uma multiplicidade de formas de trabalho e inserções laborais, onde os aspetos fundamentais, que caracterizam a sociedade salarial ocidental capitalista – o contrato de trabalho de duração indeterminada, tempo integral, período diurno, horário fixo, semana de cinco ou seis dias – são substituídas por contratos e horários atípicos. A multiplicação das formas de articulação entre tempo e trabalho parece ser a característica mais evidente dessa nova etapa de transformação social.
Sem dúvida, a discussão sobre os efeitos da tecnologia, não apenas na substituição dos trabalhos mais pesados e degradantes, mas também como fator de diminuição das oportunidades de emprego, é um tema que requer uma reflexão bastante profunda. Castells (1999), concebe a tecnologia não como um fenómeno natural mas social, não admitindo que haja um vínculo entre o desemprego estrutural e as novas tecnologias, mas que essa relação está na dependência direta da forma como é gerida. Entretanto, o desenvolvimento tecnológico tem um impacto direto na reconfiguração laboral, e é esse aspeto que sobressai na relação dos vínculos entre temporalidade e trabalho. A tecnologia interfere na relação espácio-temporal do trabalho, como afirma Gasparini (1996), e também força o aparecimento de novas formas de trabalho, já não tão vinculadas ao modelo taylorista-fordista do princípio do século XX. As alterações operadas pela tecnologia têm repercussão na conceção de tempo vinculada ao trabalho.
Analisando as transformações da temporalidade industrial, é importante reconhecer na desregulação do trabalho e na introdução do trabalho a tampo parcial ou contratos por tempo determinado, uma das mais importantes evidências da diminuição do tempo de trabalho. Uusson (1998) afirma que, durante a década de 1990, entre os países que compõem a Comunidade Europeia, os trabalhos a tempo parcial subiram de 10,9% para 15,5% dos ativos. Dados preliminares, publicados pelo Centro de Investigación Sociológico – CIS da Espanha, indicam que, em 2004, esse número já se aproximava dos 20%. Parece não haver dúvida que a ideia de trabalho a tempo parcial está vinculada, tanto à pressão exercida pela necessidade de flexibilizar a produção, cada vez mais dependente das flutuações externas, como pelo modelo de inserção laboral feminino, também já aludido por Antunes (1999). O trabalho a tempo parcial completa muitas formas de vinculação laboral, como os estágios de jovens estudantes, a meia jornada, os contratos sazonais, entre outros, mas a participação no mercado laboral do contingente feminino é um dado, por si, significativo. Não pelo que representou o ingresso das mulheres no mercado de trabalho, mas pelo modelo que a ele se associou e que começa a ser generalizado.
Um dos fatores que está diretamente relacionado com a noção de trabalho a tempo parcial, é que ele surge como um mecanismo de redistribuição do emprego, ou seja, a redução do tempo de trabalho e sua consequente transformação em jornadas parciais, utilizadas como uma proposta de enfrentar a redução da capacidade de gerar novos postos no mercado de trabalho. A perspetiva da precarização do trabalho é, portanto, outra das muitas características que surgem no seio da relação entre temporalidade e trabalho.
O estudo das novas formas de vínculo entre tempo e trabalho viabiliza e adquire o perfil de mais um elemento no estudo da contemporaneidade laboral. As decisões estratégicas, tomadas pelos países industriais do ocidente, privilegiam as novas políticas de organização produtiva, em detrimento de políticas sociais, levando a um abrandamento progressivo do conjunto das políticas que marcaram o Estado de Bem-Estar. Reconhecidamente, o liberalismo crescente das práticas económicas promoveu uma mercantilização das relações sociais e atuou de forma decisiva sobre as esferas das relações laborais e da prática social. Neste novo cenário, que está ainda em processo de construção, é difícil precisar os efeitos a longo prazo. Há, contudo, duas evidências diretamente vinculadas ao trabalho, já perfeitamente identificáveis: um aumento considerável do desemprego, numa perspetiva estrutural, e uma considerável precarização laboral.
A temporalidade constitui um fator preponderante para revelar essas evidências. Daí o empenho em aprofundarmos seu papel no estudo do mundo do trabalho. Os novos modos de inserção laboral estão pautados por regras de tempo cada vez mais distintas daquele que dominou a chamada sociedade industrial. Por isso, há a necessidade de investigar o que significa para o trabalhador aspetos que marcam a precarização laboral e que trazem no tempo o substantivo da sua realidade – jornadas parciais, contratos por tempo definido e insegurança do trabalho e do emprego.

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