sábado, 21 de junho de 2014

A desumanização do homem contemporâneo


Profundamente influenciado pelas consequências negativas do mundo tecnológico em que vivemos, o homem sofre de uma perda do sentido dos valores humanos. De uma sociedade em que os valores familiares, a convivência social, a amizade e a solidariedade eram valores fundamentais, e os objetos elementos acessórios com o fim de proporcionar algum conforto e segurança, vamos sendo reduzidos cada vez mais a uma sociedade voltada para o culto materialista. De uma sociedade humanizada vamos passando progressivamente a uma sociedade objeto. De um mundo humano a um mundo-coisa.
Os exemplos da segunda guerra mundial e as experiências científicas então realizadas nos campos de concentração, a continuidade dos conflitos regionais que têm alastrado pelo globo até aos dias de hoje; a dominação, a subjugação dos povos, a ganância que conduzem populações à miséria e à escravidão, são a demonstração de que se a ciência e a tecnologia que têm como fim único o benefício do homem, também podem ser utilizadas com fins perversos.
Face a estas anomalias e desorganização impera um espírito de irreflexão e confusão. Não é fácil ao homem de hoje conciliar uma reflexão sobre o sentido da sua existência com a velocidade vertiginosa dos meios de transporte e do ritmo de trabalho, com o ritmo das cidades, com a pressa com que se vive e comunica. Os espantosos avanços da ciência e da técnica geram nos meios de comunicação o culto do consumismo; esvai-se o humanismo do homem e emerge a conceção rigorosamente neutra do homem-objeto. A ciência e a técnica parecem estar, nos nossos dias, mais ao serviço das estratégias do poder instituído e das multinacionais do que do bem-estar da humanidade.

A técnica tem, deve ter, como ideal assegurar ao homem o domínio de um determinado objeto; toda a técnica implica, por conseguinte, uma manipulação, a tomada de posse de um objeto. É um conjunto de processos metodicamente elaborados – e por conseguinte capazes de ser ensinados e propagados – e cuja atualização e fomento tornam possível a realização de um determinado fim concreto. O domínio das coisas assim permitido liberta o homem e introduz na aparente desordem do mundo um princípio de racionalidade. Nenhuma técnica, enquanto é ou implica criação, se pode considerar degradante. A degradação começa quando se desvirtua o sentido da criação e do trabalho.
A ciência, se encarada como fator de progresso social, deve estar ao serviço da melhoria das sociedades humanas, porém, os fatores que determinam o desenvolvimento da ciência estão cada vez menos nas mãos dos cientistas e cada vez mais nas mãos dos grandes grupos económicos e decisores governamentais. O poder económico e o poder político procuram formas de aproximação da investigação científica com o objetivo do lucro, prestígio, poder militar, capacidade de domínio, oferecendo em troca financiamentos, bolsas e subsídios. A ciência vê-se assim obrigada a negociar a sua liberdade e autonomia.
Para não sermos subjugados pelo objeto, a todo o progresso da técnica deveria corresponder uma nova conquista na essência do homem; ora sucede precisamente o contrário: à medida que progridem as técnicas diminui o seu esforço de refletir e questionar. Quanto mais o homem se aperfeiçoa nas técnicas, tanto mais se torna escravo delas. A escravidão da técnica pode levar muitas vezes a confundir o mal moral com um erro técnico, ou obrigar o homem a tornar-se num egoísta, no cultivador dos seus sucessos.
Para resistir ao avanço desenfreado da tecnocracia torna-se urgente alterar esta relação entre a ciência e o poder político. Há um conjunto de sinais que nos fazem perceber a emergência de um novo público, mais crítico e interveniente, que discute os seus resultados e efeitos, que exige explicações, que confronta a ciência e a tecnologia com problemas novos. A opinião pública começou a organizar-se, a questionar-se sobre o que existe nos laboratórios e a pôr mesmo em risco os resultados da ciência. Hoje a ciência começa a não estar só na dependência do poder político e dos poderes económicos, mas também da capacidade de interrogação e intervenção crítica da opinião pública, ampliada e potenciada pelos meios de comunicação.
Surge assim a grande interrogação entre uma conceção autoritária da ciência que sabe e o público que não sabe. Uma conceção mercantil que vende boas soluções que o público compra, e uma conceção democrática que aceita a alteração das relações entre os que colocam questões e os que lhes respondem, que deseja um público informado, interessado e participativo; que protesta, que se inquieta, que resiste, que exerce o saudável princípio de vigilância civil.
Para além de uma relação economicista entre o homem da ciência e o consumidor passivo de uma tecnologia cada vez mais ininteligível, trata-se de saber se a ciência tem ou não condições para se alargar e reforçar essa democraticidade, abrindo o leque dos seus interlocutores, aceitando a intervenção do coletivo naquilo que foi, sempre, o seu domínio de trabalho.





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