O SANTO MILAGRE
Em 1246, no
reinado de D. Sancho II segundo uns, ou em 1247 segundo a “História de
Santarém edificada” do padre Inácio da Piedade e Vasconcelos, na regência do
conde de Bolonha, ou ainda em 1266, quando este já reinava como D. Afonso III,
opinião mais comum, vivia na rua das Esteiras, freguesia de Santo Estevão, na
então vila de Santarém, uma mulher que era cruelmente maltratada pelo marido.
A infeliz
atribuía isto a amores adúlteros, pois suspeitava que ele se relacionava com
outra mulher e, tendo uma comadre judia e com fama de bruxa, no intento de por
fim ao seu martírio, a foi consultar para que desse remédio para os seus males.
Esta
aconselhou-a a que fosse comungar e, sem que alguém visse, retirasse da boca a
hóstia e lha levasse embrulhada numa baetilha (lenço). “Prometo-te que, se
assim fizeres, o teu marido voltará ao bom caminho”.
A pobre mulher,
se bem que acreditou, melhor o fez. Na manhã seguinte dirigiu-se à igreja de
Santo Estevão, próximo de sua casa, procedendo conforme lhe fora indicado pela comadre.
Voltando da
igreja, ao passar por uma travessa (que mais tarde foi se tapada e onde se via, na parede
que faz frente para a rua, depois chamada do Milagre, uma cruz de
azulejo muito antiga e junto da qual esteve uma pintura que, já em 1740, mal se
percebia, representando o sacrilégio), as pessoas com quem se cruzava lhe
perguntavam se estava ferida, porque do lenço escorria sangue. A mulher
compreendeu que algo de extraordinário se passava e, entre o receio e o
arrependimento, não sabendo que responder, mudou de rumo e fugiu para casa a
guardar a Sagrada Partícula que sacrilegamente havia conspurcado,
arrecadando-a numa arca, no quarto onde dormia.
Voltando o
marido, à noite, depois de cear (jantar) foram deitar-se. Quando já tinham passado
o primeiro sono, acordou ele e viu o quarto inundado de uma luz brilhante que
vinha da arca assim como um suave perfume que se espalhava pelo quarto.
Assombrado por aqueles resplendores que saíam da arca, questionou a mulher,
que, aflitíssima, lhe contou o que se tinha passado. Não tiveram mais cuidados
do que rezar e, logo que rompeu o dia, dirigiu-se ele à igreja de Santo de
Estevão a contar o sucedido.
Os sacerdotes
que lá se encontravam, acompanhados das pessoas mais importantes da terra e de
muito povo, encaminharam-se logo para a casa dos dois pecadores e levaram, em
procissão, a milagrosa Partícula envolta na baetilha até à igreja, onde ficou
depositada. Purificou-se a arca, embebendo algum do sangue em cera, de que se
fez a primeira custódia, não parando os efeitos desta maravilha. Passados
alguns anos, pretendendo o pároco expô-la aos fiéis, deparou com a Sagrada
Hóstia recolhida numa âmbula (vaso para guardar os Santos Óleos) de
cristal, fabricada pelos anjos. A baetilha foi doada ao mosteiro do
Domínicos.
Não tardou a
disputa entre os frades domínicos e menores (os dois mosteiros da vila), a
igreja paroquial de Marvila, antiga freguesia de Santarém e a Colegiada da
Alcáçova, que todos queriam a honra de ter à sua guarda o Santo Milagre.
Os domínicos e
menores pretendiam ambos ter direito a possuir a relíquia, por serem os lugares
mais decentes para o seu culto; o pároco de Marvila alegava que a sua igreja,
além de ser a matriz das outras, era maior e mais sumptuosa, e que era lá que
devia estar; o prior e cónegos da colegiada de Alcáçova alegavam o mesmo
direito, por a sua igreja ter o privilégio de capela real; o pároco e o povo de
Santo Estevão alegavam que a hóstia era sua, pois tinha saído da sua igreja.
Venceram estes, mas contentaram os frades de S. Domingos doando-lhes a
baetilha, que guardaram num caixilho de cristal juntamente com duas bolinhas da
sagrada cera em que se recolheu o sangue.
Quanto às duas
mulheres, a que aconselhou e a que cometeu o sacrilégio, a história não diz se
foram castigadas (se nesse tempo já houvesse a inquisição, tínhamos festa e lenha para um bela fogueira, pela certa).
Uns 20 metros ao
norte da igreja de Santo Estevão, no alpendre de uma ermida particular dedicada
a Nª Sª de Monserrate, mandou o seu proprietário (Francisco Homem de Magalhães)
colocar um retrato de duas mulheres; mostra ser a sacrílega e a judia, ou outra
qualquer de povo, com a seguinte inscrição:
NO LUGAR EM
QUE ESTÁ ESTA ERMIDA, SE VIO SANGUE NA BAETILHA EM QUE A MULHER TRAZIA A
PARTICULA QUE HOJE HE VENERADA PELO SANTÍSSIMO MILAGRE. REFORMOU ESTA ERMIDA
THOMAZ HOMEM DE MAGALHÃES.
Do lado exterior
da parede, que faz frente a rua pública, foi colocada a cruz já referida.
A casa onde
viveu a mulher sacrílega, com o passar tempo se foi arruinando, convertendo-se
num pardieiro desabitado. Em 1654 ali se construiu, à custa do então médico
Manuel dos Reis Tavares, uma bonita capela abobadada de tijolo e com uma boa
pintura no retábulo do altar-mor, representando o milagre e junto, do lado da
epístola, se fez um arco na parede e se construiu um túmulo sobre dois leões,
tendo na frente a inscrição:
D’ESTA CASA
ONDE DEUS FEZ O SANTÍSSIMO MILAGRE, ANNO 1266, FIZERA EGREJA, O LICENCIADO
MANUEL DOS REIS TAVARES E MARGARIDA CESAR DE ALMEIDA E A DOTARAM, E JAZEM
DEBAIXO DO ALTAR D’ELLA.
Por esta
inscrição se pode ver que o milagre sucedeu em 1266, no entanto parece que se
mantém a dúvida quanto às datas.
Decorreram os
séculos, honrando-se Santarém de ser a custódia do Santo Milagre, até
que, no tempo da guerra peninsular, os escalabitanos, temendo que os
ímpios soldados franceses roubassem ou desacatassem o seu tesouro – o santo
milagre – o levaram para a Sé de Lisboa, debaixo de rigoroso segredo, e
dali removido para a capela do patriarca, no palácio da mitra, em Marvila.
A notícia de que
os malvados franceses tinham entrado em Coimbra, causou grande pânico na
população, que, sabedora das atrocidades que os soldados de Napoleão cometiam
por onde passavam, tratou der se pôr a salvo, fugindo para os campos.
Já pouca gente
havia na vila e os franceses, que tinham cometido toda a espécie da sacrilégios
e barbaridades, marchavam sobre o Tejo. Santarém não esperava melhor sorte. A
solução era fugir. Mas, o Santo Milagre? Haviam os Santarenos de
o abandonar?
O beneficiado da
colegiada de Santa Estevão (Francisco Paula Baptista) procura o vigário geral
da vila e resolvem que o precioso tesouro seja levado para lugar seguro.
Entretanto
surgem na Calçada do Monte as guardas avançadas do exército francês e o
beneficiado corre à igreja, retira a relíquia de Santo Estevão e as custódias,
disfarça-as numa trouxa de roupa, introduz a Sagrada Partícula num saco,
que pendura ao pescoço, e marcha para o campo da Valada. Ali, pede que enterrem
a roupa com os objetos do culto no meio duma vinha, passa o rio, vai a
Salvaterra de Magos, Samora Correia e segue para Lisboa.
No meio disto, o
patriarca de Lisboa, sabendo que Santarém fora invadida, fica em cuidados pela
sorte da miraculosa hóstia e trata de indagar, através dos escalabitanos
refugiados na capital, onde possa ela estar. É informado que era o beneficiado
Baptista quem tinha a chave do sacrário e que fugira a caminho de Lisboa;
manda-o procurar e este nega que tenha o Santo Milagre ou sequer saber
dele. É preso e encerrado no Aljube. Não acreditam na sua ignorância; supõem-no
dissimulado. Presta depoimento no dia seguinte e acaba por confessar que tem a Sagrada
Partícula consigo, mostrando a bolsa pendurada ao pescoço, por baixo da
roupa.
Informado,
o patriarca manda preparar uma carruagem forrada a damasco de seda branca e, já
de noite, vai ao Aljube, abraça o beneficiado, toma conta do invólucro com a Partícula
e seguem na carruagem para a sua quinta em Marvila, ladeados pela criadagem a
pé, com brandões (tochas) acesos.
Muitos sacerdotes aguardam
ansiosos o precioso depósito, que é levado para a capela, cantando-se o Tantum ergo. Semanas depois, ao
fim de tantas vicissitudes, foi o Santo Milagre exposto pela primeira
vez à adoração dos fiéis.
O
HOMEM DAS BOTAS
Terminado o
período das tropas de Massena forçarem as Linhas de Torres, foi o multissecular
tesouro transportado solenemente para a Sé, sendo exposto no altar-mor todos os
primeiros domingos de cada mês.
A 5 de março de
1811, Massena, depois de ter cometido com a sua gente os roubos, os desacatos e
atrocidades conhecidas, abandona Santarém e, perseguido pelas forças do
exército anglo-luso, retira-se para o norte, sendo derrotado por Wellesley no
Sabugal e obrigado a atravessar a fronteira.
Livres dos
franceses, logo os escalabitanos trataram de reaver o seu Santo
Milagre, mas os lisboetas não queriam tal restituição. O patriarca
pretendia entregar a relíquia aos seus legítimos donos; mas temia que algum
tumulto trouxesse funestas consequências. Também era boa a vontade das
autoridades civis e dos Governadores do reino. Temia-se, no entanto, a revolta
do povo, que ameaçava opor-se por todos os modos à saída do Santo Milagre.
Oito meses durou
esta polémica: Houve troca de ofícios, conferências e outras tentativas, todas
infrutíferas, até que, na manhã de 30 de novembro aparece em todas as esquinas
das ruas de Lisboa o seguinte anúncio:
NOTÍCIA
AO PÚBLICO
Um
oficial do exercito britannico, tendo apostado 500 libras sterlinas, que há de
passar a travessa do rio Tejo, na segunda-feira que vem, á uma hora depois do
meio dia, em um par de botas de cortiça, principiando o seu passeio pela torre
de Belem, e d’hai á Torre Velha.
Estas
botas são de uma construção admiravel e curiosa: foram inventadas pelo mesmo
oficial que faz o passeio.
Lisboa
Na
oficina de Joaquim Thomaz de Aquino Bulhões
1811
Com
licença do desembargo do paço.[i]
Este anúncio
despertou grande interesse e toda a cidade de Lisboa correu a Belém para ver o homem
das botas.
Tudo estava de
feição. O dia estava ameno e aprazível para se fazer tão extraordinária
demonstração, milhares de pessoas cobriam as praias do Tejo a fim de admirarem
o passeio aquático do engenhoso e destemido oficial inglês.
Desde manhã cedo
que os lisboetas se dirigiam, a pé ou utilizando os mais variados meios de
transporte, para o local onde havia de se realizar a grande prova. Ao meio-dia
já não se podia romper da Junqueira até Algés e nos montes do Lazareto via-se
igualmente muita gente que ali se juntara para o insólito espetáculo. No rio
viam-se também muitas embarcações. Lisboa ficara despovoada.
À uma depois do
meio-dia o rapazio começou a gritar: «É agora! É agora!»
Os olhares
concentram-se no areal junto à Torre de Belém. Aumenta a ansiedade. Será
aquele?... não será?... Passou a uma, passaram as duas horas, e nada.
«É agora! É
agora!»
Todos se
esticavam para ver melhor, abriam os olhos para não perder nada; mas era rebate
falso. Três, três e meia, quatro horas… e nada! O público desespera.
Cai a tarde, vem
a noite; vem o desânimo; começa o regresso a Lisboa. Foi a debandada sem que
houvesse, ao menos, notícia do homem das botas. Quem era… onde estava.
Entretanto, nas
imediações da Sé, corre a notícia que a Sagrada Partícula do Santo Milagre
fora levada para bordo de uma falua que a transportava caminho de Santarém,
acompanhada do patriarca até ao Sabugueiro.
No outro dia
toda a Lisboa reconheceu que caiu no logro: fora atraída para Belém a fim de
não impedir que o Santo Milagre regressasse à origem.
Enquanto
milhares de lisboetas enchiam as praias do Tejo, metiam os escalabitanos a
relíquia num barco e fugiam com ela, remando toda a força pelo rio acima,
chegando nesse mesmo dia a Santarém.
Ainda hoje os lisbonenses esperam
pelo homem das botas.
Fontes:
Padre Ignácio da
Piedade e Vasconcelos, História de Santarém Edificada, 1ª Parte, Livro
II, Cap. II, págs. 236/43 e Cap. V, págs. 251/55.
Pinho Leal, Portugal Antigo e Moderno, Vol. 4,
362/63 e Vol. 8, págs. 477/79
[i]
Também se supunha que (e é muito provável) os lisboetas não se opunham à saída
da Santa Partícula; mas que os escalabitanos fingiram um medo que não
tinham, para se livrarem da grande despesa que tinham de suportar na condução
da relíquia com a devida pompa e majestade.
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