quinta-feira, 17 de abril de 2025

O SANTO MILAGRE E O HOMEM DAS BOTAS

 O SANTO MILAGRE

Em 1246, no reinado de D. Sancho II segundo uns, ou em 1247 segundo a “História de Santarém edificada” do padre Inácio da Piedade e Vasconcelos, na regência do conde de Bolonha, ou ainda em 1266, quando este já reinava como D. Afonso III, opinião mais comum, vivia na rua das Esteiras, freguesia de Santo Estevão, na então vila de Santarém, uma mulher que era cruelmente maltratada pelo marido.
A infeliz atribuía isto a amores adúlteros, pois suspeitava que ele se relacionava com outra mulher e, tendo uma comadre judia e com fama de bruxa, no intento de por fim ao seu martírio, a foi consultar para que desse remédio para os seus males.
Esta aconselhou-a a que fosse comungar e, sem que alguém visse, retirasse da boca a hóstia e lha levasse embrulhada numa baetilha (lenço). “Prometo-te que, se assim fizeres, o teu marido voltará ao bom caminho”.
A pobre mulher, se bem que acreditou, melhor o fez. Na manhã seguinte dirigiu-se à igreja de Santo Estevão, próximo de sua casa, procedendo conforme lhe fora indicado pela comadre.
Voltando da igreja, ao passar por uma travessa (que mais tarde foi se tapada e onde se via, na parede que faz frente para a rua, depois chamada do Milagre, uma cruz de azulejo muito antiga e junto da qual esteve uma pintura que, já em 1740, mal se percebia, representando o sacrilégio), as pessoas com quem se cruzava lhe perguntavam se estava ferida, porque do lenço escorria sangue. A mulher compreendeu que algo de extraordinário se passava e, entre o receio e o arrependimento, não sabendo que responder, mudou de rumo e fugiu para casa a guardar a Sagrada Partícula que sacrilegamente havia conspurcado, arrecadando-a numa arca, no quarto onde dormia.
Voltando o marido, à noite, depois de cear (jantar) foram deitar-se. Quando já tinham passado o primeiro sono, acordou ele e viu o quarto inundado de uma luz brilhante que vinha da arca assim como um suave perfume que se espalhava pelo quarto. Assombrado por aqueles resplendores que saíam da arca, questionou a mulher, que, aflitíssima, lhe contou o que se tinha passado. Não tiveram mais cuidados do que rezar e, logo que rompeu o dia, dirigiu-se ele à igreja de Santo de Estevão a contar o sucedido.
Os sacerdotes que lá se encontravam, acompanhados das pessoas mais importantes da terra e de muito povo, encaminharam-se logo para a casa dos dois pecadores e levaram, em procissão, a milagrosa Partícula envolta na baetilha até à igreja, onde ficou depositada. Purificou-se a arca, embebendo algum do sangue em cera, de que se fez a primeira custódia, não parando os efeitos desta maravilha. Passados alguns anos, pretendendo o pároco expô-la aos fiéis, deparou com a Sagrada Hóstia recolhida numa âmbula (vaso para guardar os Santos Óleos) de cristal, fabricada pelos anjos. A baetilha foi doada ao mosteiro do Domínicos.
Não tardou a disputa entre os frades domínicos e menores (os dois mosteiros da vila), a igreja paroquial de Marvila, antiga freguesia de Santarém e a Colegiada da Alcáçova, que todos queriam a honra de ter à sua guarda o Santo Milagre.
Os domínicos e menores pretendiam ambos ter direito a possuir a relíquia, por serem os lugares mais decentes para o seu culto; o pároco de Marvila alegava que a sua igreja, além de ser a matriz das outras, era maior e mais sumptuosa, e que era lá que devia estar; o prior e cónegos da colegiada de Alcáçova alegavam o mesmo direito, por a sua igreja ter o privilégio de capela real; o pároco e o povo de Santo Estevão alegavam que a hóstia era sua, pois tinha saído da sua igreja. Venceram estes, mas contentaram os frades de S. Domingos doando-lhes a baetilha, que guardaram num caixilho de cristal juntamente com duas bolinhas da sagrada cera em que se recolheu o sangue.
Quanto às duas mulheres, a que aconselhou e a que cometeu o sacrilégio, a história não diz se foram castigadas (se nesse tempo já houvesse a inquisição, tínhamos festa e lenha para um bela fogueira, pela certa).
Uns 20 metros ao norte da igreja de Santo Estevão, no alpendre de uma ermida particular dedicada a Nª Sª de Monserrate, mandou o seu proprietário (Francisco Homem de Magalhães) colocar um retrato de duas mulheres; mostra ser a sacrílega e a judia, ou outra qualquer de povo, com a seguinte inscrição:

NO LUGAR EM QUE ESTÁ ESTA ERMIDA, SE VIO SANGUE NA BAETILHA EM QUE A MULHER TRAZIA A PARTICULA QUE HOJE HE VENERADA PELO SANTÍSSIMO MILAGRE. REFORMOU ESTA ERMIDA THOMAZ HOMEM DE MAGALHÃES.

Do lado exterior da parede, que faz frente a rua pública, foi colocada a cruz já referida.

A casa onde viveu a mulher sacrílega, com o passar tempo se foi arruinando, convertendo-se num pardieiro desabitado. Em 1654 ali se construiu, à custa do então médico Manuel dos Reis Tavares, uma bonita capela abobadada de tijolo e com uma boa pintura no retábulo do altar-mor, representando o milagre e junto, do lado da epístola, se fez um arco na parede e se construiu um túmulo sobre dois leões, tendo na frente a inscrição:

D’ESTA CASA ONDE DEUS FEZ O SANTÍSSIMO MILAGRE, ANNO 1266, FIZERA EGREJA, O LICENCIADO MANUEL DOS REIS TAVARES E MARGARIDA CESAR DE ALMEIDA E A DOTARAM, E JAZEM DEBAIXO DO ALTAR D’ELLA.

Por esta inscrição se pode ver que o milagre sucedeu em 1266, no entanto parece que se mantém a dúvida quanto às datas.

Decorreram os séculos, honrando-se Santarém de ser a custódia do Santo Milagre, até que, no tempo da guerra peninsular, os escalabitanos, temendo que os ímpios soldados franceses roubassem ou desacatassem o seu tesouro – o santo milagre – o levaram para a Sé de Lisboa, debaixo de rigoroso segredo, e dali removido para a capela do patriarca, no palácio da mitra, em Marvila.
A notícia de que os malvados franceses tinham entrado em Coimbra, causou grande pânico na população, que, sabedora das atrocidades que os soldados de Napoleão cometiam por onde passavam, tratou der se pôr a salvo, fugindo para os campos.
Já pouca gente havia na vila e os franceses, que tinham cometido toda a espécie da sacrilégios e barbaridades, marchavam sobre o Tejo. Santarém não esperava melhor sorte. A solução era fugir. Mas, o Santo Milagre? Haviam os Santarenos de o abandonar?
O beneficiado da colegiada de Santa Estevão (Francisco Paula Baptista) procura o vigário geral da vila e resolvem que o precioso tesouro seja levado para lugar seguro.
Entretanto surgem na Calçada do Monte as guardas avançadas do exército francês e o beneficiado corre à igreja, retira a relíquia de Santo Estevão e as custódias, disfarça-as numa trouxa de roupa, introduz a Sagrada Partícula num saco, que pendura ao pescoço, e marcha para o campo da Valada. Ali, pede que enterrem a roupa com os objetos do culto no meio duma vinha, passa o rio, vai a Salvaterra de Magos, Samora Correia e segue para Lisboa.
No meio disto, o patriarca de Lisboa, sabendo que Santarém fora invadida, fica em cuidados pela sorte da miraculosa hóstia e trata de indagar, através dos escalabitanos refugiados na capital, onde possa ela estar. É informado que era o beneficiado Baptista quem tinha a chave do sacrário e que fugira a caminho de Lisboa; manda-o procurar e este nega que tenha o Santo Milagre ou sequer saber dele. É preso e encerrado no Aljube. Não acreditam na sua ignorância; supõem-no dissimulado. Presta depoimento no dia seguinte e acaba por confessar que tem a Sagrada Partícula consigo, mostrando a bolsa pendurada ao pescoço, por baixo da roupa.
Informado, o patriarca manda preparar uma carruagem forrada a damasco de seda branca e, já de noite, vai ao Aljube, abraça o beneficiado, toma conta do invólucro com a Partícula e seguem na carruagem para a sua quinta em Marvila, ladeados pela criadagem a pé, com brandões (tochas) acesos.
Muitos sacerdotes aguardam ansiosos o precioso depósito, que é levado para a capela, cantando-se o Tantum ergo. Semanas depois, ao fim de tantas vicissitudes, foi o Santo Milagre exposto pela primeira vez à adoração dos fiéis.

O HOMEM DAS BOTAS

Terminado o período das tropas de Massena forçarem as Linhas de Torres, foi o multissecular tesouro transportado solenemente para a Sé, sendo exposto no altar-mor todos os primeiros domingos de cada mês.

A 5 de março de 1811, Massena, depois de ter cometido com a sua gente os roubos, os desacatos e atrocidades conhecidas, abandona Santarém e, perseguido pelas forças do exército anglo-luso, retira-se para o norte, sendo derrotado por Wellesley no Sabugal e obrigado a atravessar a fronteira.
Livres dos franceses, logo os escalabitanos trataram de reaver o seu Santo Milagre, mas os lisboetas não queriam tal restituição. O patriarca pretendia entregar a relíquia aos seus legítimos donos; mas temia que algum tumulto trouxesse funestas consequências. Também era boa a vontade das autoridades civis e dos Governadores do reino. Temia-se, no entanto, a revolta do povo, que ameaçava opor-se por todos os modos à saída do Santo Milagre.
Oito meses durou esta polémica: Houve troca de ofícios, conferências e outras tentativas, todas infrutíferas, até que, na manhã de 30 de novembro aparece em todas as esquinas das ruas de Lisboa o seguinte anúncio:

NOTÍCIA AO PÚBLICO

Um oficial do exercito britannico, tendo apostado 500 libras sterlinas, que há de passar a travessa do rio Tejo, na segunda-feira que vem, á uma hora depois do meio dia, em um par de botas de cortiça, principiando o seu passeio pela torre de Belem, e d’hai á Torre Velha.
Estas botas são de uma construção admiravel e curiosa: foram inventadas pelo mesmo oficial que faz o passeio.
Lisboa
Na oficina de Joaquim Thomaz de Aquino Bulhões
1811
Com licença do desembargo do paço.[i]

Este anúncio despertou grande interesse e toda a cidade de Lisboa correu a Belém para ver o homem das botas.

Tudo estava de feição. O dia estava ameno e aprazível para se fazer tão extraordinária demonstração, milhares de pessoas cobriam as praias do Tejo a fim de admirarem o passeio aquático do engenhoso e destemido oficial inglês.
Desde manhã cedo que os lisboetas se dirigiam, a pé ou utilizando os mais variados meios de transporte, para o local onde havia de se realizar a grande prova. Ao meio-dia já não se podia romper da Junqueira até Algés e nos montes do Lazareto via-se igualmente muita gente que ali se juntara para o insólito espetáculo. No rio viam-se também muitas embarcações. Lisboa ficara despovoada.
À uma depois do meio-dia o rapazio começou a gritar: «É agora! É agora!»
Os olhares concentram-se no areal junto à Torre de Belém. Aumenta a ansiedade. Será aquele?... não será?... Passou a uma, passaram as duas horas, e nada.
«É agora! É agora!»
Todos se esticavam para ver melhor, abriam os olhos para não perder nada; mas era rebate falso. Três, três e meia, quatro horas… e nada! O público desespera.
Cai a tarde, vem a noite; vem o desânimo; começa o regresso a Lisboa. Foi a debandada sem que houvesse, ao menos, notícia do homem das botas. Quem era… onde estava.
Entretanto, nas imediações da Sé, corre a notícia que a Sagrada Partícula do Santo Milagre fora levada para bordo de uma falua que a transportava caminho de Santarém, acompanhada do patriarca até ao Sabugueiro.
No outro dia toda a Lisboa reconheceu que caiu no logro: fora atraída para Belém a fim de não impedir que o Santo Milagre regressasse à origem.
Enquanto milhares de lisboetas enchiam as praias do Tejo, metiam os escalabitanos a relíquia num barco e fugiam com ela, remando toda a força pelo rio acima, chegando nesse mesmo dia a Santarém.
Ainda hoje os lisbonenses esperam pelo homem das botas.

Fontes:

Padre Ignácio da Piedade e Vasconcelos, História de Santarém Edificada, 1ª Parte, Livro II, Cap. II, págs. 236/43 e Cap. V, págs. 251/55.
Pinho Leal, Portugal Antigo e Moderno, Vol. 4, 362/63 e Vol. 8, págs. 477/79

[i] Também se supunha que (e é muito provável) os lisboetas não se opunham à saída da Santa Partícula; mas que os escalabitanos fingiram um medo que não tinham, para se livrarem da grande despesa que tinham de suportar na condução da relíquia com a devida pompa e majestade.