quinta-feira, 1 de maio de 2025

SANGUEDO – SANTA MARIA DA FEIRA

Geograficamente situada na parte setentrional do concelho de Santa Maria da Feira, distrito de Aveiro, a cerca de 12 km da sede do concelho e 17 km da cidade do Porto, a freguesia de Sanguedo é limitada a Sul e Este pelo rio Uíma (que também foi chamado Gaeta em razão de passar pelo lugar desse nome, na freguesia de Vila Maior), confina com as freguesias de Argoncilhe, Fiães, Lobão, Vila Maior e Sandim, esta última a NE e pertencente ao concelho de Vila Nova de Gaia.
Com cerca de 4,31 Km2 (IGP/2013) e 3474 habitantes (censo de 2021), esta freguesia tem, por isso, uma densidade populacional de 806 hab./Km2.


O brasão de Sanguedo é formado por um escudo de púrpura com a imagem de Santa Eulália (padroeira protetora) com túnica branca e manto de vermelho, dois ramos de sanguinos à esquerda e à direita e duas espigas de milho, folhas em ponta com os pés cruzados em aspa, tudo em ouro. Coroa mural de prata com três torres e listel branco com legenda a negro e em maiúsculas “SANGUEDO”.
Bandeira esquartelada de purpura e amarelo e estandarte com cordões e borlas de ouro e púrpura, haste e lança de ouro.

Sanguedo tem origem antiquíssima. Nos dicionários geográficos do século XVIII e anteriores, vem designada como Sanguedo, havendo quem afirme que seu verdadeiro nome era São Guêdo, que terá sido o primeiro padroeiro da povoação. Também era vulgarmente conhecida por Terreiro ou Santa Eulália do Terreiro.
Em 1757, tinha esta freguesia 152 fogos e era seu orago Santa Eulália.
O seu reitor era apresentado pelo real padroado, tinha 170$000 reis de rendimento e o pé d’altar (rendimento dos serviços religiosos). Tinha uma boa residência e passais sofríveis.
A igreja matriz, ainda que muito antiga, é um bonito templo e bem conservado em razão dos bons materiais de que foi construído, está situada numa bonita planície e com extensas vistas.
Terra fértil em todos os géneros agrícolas, criando muito gado bovino, que exporta. Faz negócio constante com a cidade do Porto.
A freguesia é cortada pela nova estrada, em construção, (1874) para unir Gaia à Feira e à estação do caminho de ferro em Ovar
Tinha também uma feira a 24 de cada mês.

Segundo parece, o primeiro nome desta freguesia foi Sanganhedo ou Sangunhedo.
Por documentos que existiram no mosteiro de Pedroso, Gaia, sabe-se que:
Gondezindo, filho d'Ero e sua mulher, Enderquina Pala, filha de capitão Mendo Guterres, tiveram (Gondezindo e Pala) quatro filhos: — Soeiro, Ermesinda, Adosinda e Froila.
No dia 9 das calendas de março, da era de Cesar 933 (27 de fevereiro do ano 897(?) de J.C), (933=895; 935=897) o dito Gondezindo e sua mulher doaram ao mosteiro de monges e monjas, da ordem de S. Bento, do Salvador, de Labra (o Salvador é ainda o padroeiro da freguesia de Lavra, no concelho de Bouças, hoje Matosinhos) junto à praia do mar (fundato ab antiqua in ripa maris) e pouco ao N. de Matosinhos, os três mosteiros da mesma ordem, e também dobrados, que haviam fundado, que eram:
1º — S. Miguel, d'Azevedo (hoje ainda este lugar conserva o nome oficial de Azevedo, mas denominava-se vulgarmente, Azeveduce, na freguesia de S. Jorge de Caldelas (Caldas de S. Jorge), do concelho da Feira — para a distinguir de outra do mesmo nome, a 4 quilómetros ao N.E. desta, e na freguesia de Gião, do mesmo concelho. Deste mosteiro de S. Miguel, de Azevedo, não existe o mínimo vestígio.
2º — SÃO CHRISTOVAM DE SANGANHÊDO, onde já havia uma antiga igreja de Santa Eulália, entre Douro e Vouga. (Santa Eulália, é ainda atualmente a padroeira da freguesia de Sanguedo. Vê-se, portanto, que esta paróquia já existia antes da invasão dos mouros na Lusitânia, em 716.)

Não sei se ainda existem vestígios deste antiquíssimo mosteiro, junto à igreja; e formava parte dele, e também não sei se ainda é a atual residência do pároco — já se sabe, muitas vezes reconstruída.

3º — S. Pedro, de Dide, entre o Douro e Tâmega. (?) Esta doação foi feita, sendo abade do mosteiro de Lavra, D. Desterigo, e com a condição de ser neste mosteiro religiosa, sua filha, D. Froila, à qual deram também os doadores, 100 escravos, para que a servissem em sua vida e, por sua morte, ficassem forros, bem como suas mulheres, filhos e netos. «Et non habeant licentiam ex genere meo acrepantandi illos, pro servitio.» (E não terão licença de tratar com rigor os escravos, por causa do trabalho. Acrepantar, era um verbo do antigo português, e significava, subjugar, obrigar ao trabalho, tratar com rigor, etc.)

Todos estes três mosteiros foram findados em quintas dos doadores.
Ainda na mesma data, Gondezindo e sua mulher, doaram também ao mosteiro de Lavra (no qual sua filha Adosinda se havia feito religiosa), entre outros muitos bens, os padroados das seguintes igrejas:
1ª — Santa Eulália, de Gondomar.
2ª — São Pedro, de Kauso. (?)
3ª — São Martinho, de Valongo. (Hoje, São Martinho do Campo, no concelho de Valongo.)
A doação foi feita — «ad Fratres, el Sorores, qui ibi sunt avitantes, vel qui ibidem Dominus super duxerint, et in vita Sancta perceberint, sub manus de ipsa Abba, et de ipsa filia mea, jam superius nominatis.» (aos irmãos e irmãs que ali estão, evitando, ou que o Senhor conduziu até ali e que alcançaram uma vida santa, pelas mãos do mesmo abade e da minha própria filha, já referidas anteriormente).
Protestaram os doadores, que era sua suprema vontade, que em nenhum tempo, e sob qualquer pretexto, se possam estes bens vender, dar, doar, ou por outro qualquer modo alienar do dito mosteiro, etc.
Na primeira doação que fica referida, onde se inclui o mosteiro de Sanganhedo (a), declaram os doadores que sua filha Froila nascera tão aleijada e contrafeita, que se não podia sentar; o que atribuíam a castigo das suas culpas (deles doadores). E para que Deus lhes perdoasse, libertaram todos os seus escravos e separaram a quinta parte de todos os seus bens, que eram imensos, e com ela fundaram e largamente dotaram os três mosteiros beneditinos, duplex, da primeira doação, e que nela doaram ao mosteiro de Lavra, do qual era então abadessa, D. Gelvira.
A D. Adosinda deram também 100 escravos forros, d'ambos os sexos, para a servirem enquanto ela vivesse.
Esta mesma senhora, depois da morte de sua mãe, fundou com várias herdades do seu dote, o mosteiro de S. Martinho d'Avintes, sobre a margem esquerda do Douro, e a 3 quilómetros ao E. do Porto; ao qual seu pai doou o senhorio da mesma vila d'Avintes.
Estas escrituras de doação acham-se originais no arquivo da universidade de Coimbra.

(a) Houve na freguesia de Lavra, Matosinhos, um antiquíssimo convento duplex (de ambos os sexos) da Ordem de S. Bento, fundado no tempo dos suevos. Chamava-se mosteiro de S. Salvador de Labra. Em 897, doou D. Gundezindo a este mosteiro fundato ab antiquo in ripa maris (no qual sua filha Adosinda se tinha feito religiosa) muitas igrejas, e entre elas Santa Eulália de Gondemar, S. Pedro de Kauso e S. Martinho de Vallongo, Sever do Vouga, Várzea de Carvoeiro, Bigas e Esmoriz.

N'esta doação (que era muito grande) se diz que D. Gundezindo era filho de Ero e casara com Enderquina Pala, filha do capitão Mendo (ou Mem) Guterres, da qual teve estes filhos: Sueiro, Ermisinda, Adosinda & Froilo, e que esta (Froilo) nascera tão aleijada, que se não podia sentar; o que, atribuindo seus pais a castigo das suas culpas, libertaram seus escravos e separaram a quinta parte dos seus muitos bens, com que fundaram e largamente dotaram três convénios nas suas próprias terras, a saber : — o de S. Miguel Archanjo e seus companheiros, em Azevedo (freguesia das Caldas de S. Jorge, no concelho da Feira) — o de S. Christovão e seus companheiros, em Sanganhêdo (hoje Sanguedo ou Terreiro, ou simplesmente Sanguedo, também no concelho da Feira) onde havia uma antiga egreja de Santa' Eolalia; ambas entre Vouga e Douroe o de S. Pedro de Dide, entre Douro e Tâmega. Os quaes entregaram ao abbade Dom Desterigo, para que n'elles fosse religiosa sua filha Froilo, debaixo da obediência da abbadessa D. Gelvira, dando-lhe 100 escravos forros, entre homens e mulheres, para que a servissem em quanto fosse viva. E que, ficando vivo Gundezindo, elle e sua filha Adosinda, fundaram o mosteiro de S. Martinho d'Avintes. Esta Adosinda se meteu depois freira em Lavra. (Documento da Universidade de Coimbra).

Conhecida como a Capital da Fórmula ROLL, a freguesia de Sanguedo, apesar de uma vetusta fisionomia rural e laboriosa por tradição, foi, até há relativamente pouco tempo, um centro aglutinador de pequenas indústrias caseiras, às quais se sobrepõe atualmente um conjunto diversificado de pequenas e médias estruturas empresariais, que emerge em função e por inerência das necessidades da vida moderna, destacando-se, entre todas, a indústria da construção civil.
Mesmo sendo, em termos populacionais, uma das freguesias menos povoadas do concelho, pode dizer-se que a sua vivência sociocultural é das mais ricas. Alicerçada em coletividades que desempenham um papel fundamental nesta área, como acontece por exemplo com a dinâmica “Juventude de Sanguedo”, possui um moderno edifício sede da Junta de Freguesia, onde funciona o Posto de Assistência e Serviço Médico Social e a Biblioteca, para além do conjunto de escolas primárias e pré-primárias, do Centro Social de apoio à terceira idade, Rancho Folclórico Santa Eulália, Unidos do Pedal-Clube BTT, União Columbófila, etc., que convergem no sentido de dar resposta aos mais profundos anseios da população.
Sanguedo pode orgulhar-se da sua vida associativa e cultural, que assim garante, de forma eficaz, a transmissão das tradições mais genuínas às gerações presentes e vindouras.

Fontes:

Leal, Pinho; Portugal Antigo e Moderno, Vol. 1, pág. 292; Vol. 3, págs. 344 e 345; Vol. 4, págs. 59 e 60; Vol. 8, págs. 391 a 393.

https://www.jf-sanguedo.pt/

https://pt.wikipedia.org/wiki/Sanguedo

https://www.heraldicacivica.pt/vfr-sanguedo.html#gsc.tab=0

quinta-feira, 17 de abril de 2025

O SANTO MILAGRE E O HOMEM DAS BOTAS

 O SANTO MILAGRE

Em 1246, no reinado de D. Sancho II segundo uns, ou em 1247 segundo a “História de Santarém edificada” do padre Inácio da Piedade e Vasconcelos, na regência do conde de Bolonha, ou ainda em 1266, quando este já reinava como D. Afonso III, opinião mais comum, vivia na rua das Esteiras, freguesia de Santo Estevão, na então vila de Santarém, uma mulher que era cruelmente maltratada pelo marido.
A infeliz atribuía isto a amores adúlteros, pois suspeitava que ele se relacionava com outra mulher e, tendo uma comadre judia e com fama de bruxa, no intento de por fim ao seu martírio, a foi consultar para que desse remédio para os seus males.
Esta aconselhou-a a que fosse comungar e, sem que alguém visse, retirasse da boca a hóstia e lha levasse embrulhada numa baetilha (lenço). “Prometo-te que, se assim fizeres, o teu marido voltará ao bom caminho”.
A pobre mulher, se bem que acreditou, melhor o fez. Na manhã seguinte dirigiu-se à igreja de Santo Estevão, próximo de sua casa, procedendo conforme lhe fora indicado pela comadre.
Voltando da igreja, ao passar por uma travessa (que mais tarde foi se tapada e onde se via, na parede que faz frente para a rua, depois chamada do Milagre, uma cruz de azulejo muito antiga e junto da qual esteve uma pintura que, já em 1740, mal se percebia, representando o sacrilégio), as pessoas com quem se cruzava lhe perguntavam se estava ferida, porque do lenço escorria sangue. A mulher compreendeu que algo de extraordinário se passava e, entre o receio e o arrependimento, não sabendo que responder, mudou de rumo e fugiu para casa a guardar a Sagrada Partícula que sacrilegamente havia conspurcado, arrecadando-a numa arca, no quarto onde dormia.
Voltando o marido, à noite, depois de cear (jantar) foram deitar-se. Quando já tinham passado o primeiro sono, acordou ele e viu o quarto inundado de uma luz brilhante que vinha da arca assim como um suave perfume que se espalhava pelo quarto. Assombrado por aqueles resplendores que saíam da arca, questionou a mulher, que, aflitíssima, lhe contou o que se tinha passado. Não tiveram mais cuidados do que rezar e, logo que rompeu o dia, dirigiu-se ele à igreja de Santo de Estevão a contar o sucedido.
Os sacerdotes que lá se encontravam, acompanhados das pessoas mais importantes da terra e de muito povo, encaminharam-se logo para a casa dos dois pecadores e levaram, em procissão, a milagrosa Partícula envolta na baetilha até à igreja, onde ficou depositada. Purificou-se a arca, embebendo algum do sangue em cera, de que se fez a primeira custódia, não parando os efeitos desta maravilha. Passados alguns anos, pretendendo o pároco expô-la aos fiéis, deparou com a Sagrada Hóstia recolhida numa âmbula (vaso para guardar os Santos Óleos) de cristal, fabricada pelos anjos. A baetilha foi doada ao mosteiro do Domínicos.
Não tardou a disputa entre os frades domínicos e menores (os dois mosteiros da vila), a igreja paroquial de Marvila, antiga freguesia de Santarém e a Colegiada da Alcáçova, que todos queriam a honra de ter à sua guarda o Santo Milagre.
Os domínicos e menores pretendiam ambos ter direito a possuir a relíquia, por serem os lugares mais decentes para o seu culto; o pároco de Marvila alegava que a sua igreja, além de ser a matriz das outras, era maior e mais sumptuosa, e que era lá que devia estar; o prior e cónegos da colegiada de Alcáçova alegavam o mesmo direito, por a sua igreja ter o privilégio de capela real; o pároco e o povo de Santo Estevão alegavam que a hóstia era sua, pois tinha saído da sua igreja. Venceram estes, mas contentaram os frades de S. Domingos doando-lhes a baetilha, que guardaram num caixilho de cristal juntamente com duas bolinhas da sagrada cera em que se recolheu o sangue.
Quanto às duas mulheres, a que aconselhou e a que cometeu o sacrilégio, a história não diz se foram castigadas (se nesse tempo já houvesse a inquisição, tínhamos festa e lenha para um bela fogueira, pela certa).
Uns 20 metros ao norte da igreja de Santo Estevão, no alpendre de uma ermida particular dedicada a Nª Sª de Monserrate, mandou o seu proprietário (Francisco Homem de Magalhães) colocar um retrato de duas mulheres; mostra ser a sacrílega e a judia, ou outra qualquer de povo, com a seguinte inscrição:

NO LUGAR EM QUE ESTÁ ESTA ERMIDA, SE VIO SANGUE NA BAETILHA EM QUE A MULHER TRAZIA A PARTICULA QUE HOJE HE VENERADA PELO SANTÍSSIMO MILAGRE. REFORMOU ESTA ERMIDA THOMAZ HOMEM DE MAGALHÃES.

Do lado exterior da parede, que faz frente a rua pública, foi colocada a cruz já referida.

A casa onde viveu a mulher sacrílega, com o passar tempo se foi arruinando, convertendo-se num pardieiro desabitado. Em 1654 ali se construiu, à custa do então médico Manuel dos Reis Tavares, uma bonita capela abobadada de tijolo e com uma boa pintura no retábulo do altar-mor, representando o milagre e junto, do lado da epístola, se fez um arco na parede e se construiu um túmulo sobre dois leões, tendo na frente a inscrição:

D’ESTA CASA ONDE DEUS FEZ O SANTÍSSIMO MILAGRE, ANNO 1266, FIZERA EGREJA, O LICENCIADO MANUEL DOS REIS TAVARES E MARGARIDA CESAR DE ALMEIDA E A DOTARAM, E JAZEM DEBAIXO DO ALTAR D’ELLA.

Por esta inscrição se pode ver que o milagre sucedeu em 1266, no entanto parece que se mantém a dúvida quanto às datas.

Decorreram os séculos, honrando-se Santarém de ser a custódia do Santo Milagre, até que, no tempo da guerra peninsular, os escalabitanos, temendo que os ímpios soldados franceses roubassem ou desacatassem o seu tesouro – o santo milagre – o levaram para a Sé de Lisboa, debaixo de rigoroso segredo, e dali removido para a capela do patriarca, no palácio da mitra, em Marvila.
A notícia de que os malvados franceses tinham entrado em Coimbra, causou grande pânico na população, que, sabedora das atrocidades que os soldados de Napoleão cometiam por onde passavam, tratou der se pôr a salvo, fugindo para os campos.
Já pouca gente havia na vila e os franceses, que tinham cometido toda a espécie da sacrilégios e barbaridades, marchavam sobre o Tejo. Santarém não esperava melhor sorte. A solução era fugir. Mas, o Santo Milagre? Haviam os Santarenos de o abandonar?
O beneficiado da colegiada de Santa Estevão (Francisco Paula Baptista) procura o vigário geral da vila e resolvem que o precioso tesouro seja levado para lugar seguro.
Entretanto surgem na Calçada do Monte as guardas avançadas do exército francês e o beneficiado corre à igreja, retira a relíquia de Santo Estevão e as custódias, disfarça-as numa trouxa de roupa, introduz a Sagrada Partícula num saco, que pendura ao pescoço, e marcha para o campo da Valada. Ali, pede que enterrem a roupa com os objetos do culto no meio duma vinha, passa o rio, vai a Salvaterra de Magos, Samora Correia e segue para Lisboa.
No meio disto, o patriarca de Lisboa, sabendo que Santarém fora invadida, fica em cuidados pela sorte da miraculosa hóstia e trata de indagar, através dos escalabitanos refugiados na capital, onde possa ela estar. É informado que era o beneficiado Baptista quem tinha a chave do sacrário e que fugira a caminho de Lisboa; manda-o procurar e este nega que tenha o Santo Milagre ou sequer saber dele. É preso e encerrado no Aljube. Não acreditam na sua ignorância; supõem-no dissimulado. Presta depoimento no dia seguinte e acaba por confessar que tem a Sagrada Partícula consigo, mostrando a bolsa pendurada ao pescoço, por baixo da roupa.
Informado, o patriarca manda preparar uma carruagem forrada a damasco de seda branca e, já de noite, vai ao Aljube, abraça o beneficiado, toma conta do invólucro com a Partícula e seguem na carruagem para a sua quinta em Marvila, ladeados pela criadagem a pé, com brandões (tochas) acesos.
Muitos sacerdotes aguardam ansiosos o precioso depósito, que é levado para a capela, cantando-se o Tantum ergo. Semanas depois, ao fim de tantas vicissitudes, foi o Santo Milagre exposto pela primeira vez à adoração dos fiéis.

O HOMEM DAS BOTAS

Terminado o período das tropas de Massena forçarem as Linhas de Torres, foi o multissecular tesouro transportado solenemente para a Sé, sendo exposto no altar-mor todos os primeiros domingos de cada mês.

A 5 de março de 1811, Massena, depois de ter cometido com a sua gente os roubos, os desacatos e atrocidades conhecidas, abandona Santarém e, perseguido pelas forças do exército anglo-luso, retira-se para o norte, sendo derrotado por Wellesley no Sabugal e obrigado a atravessar a fronteira.
Livres dos franceses, logo os escalabitanos trataram de reaver o seu Santo Milagre, mas os lisboetas não queriam tal restituição. O patriarca pretendia entregar a relíquia aos seus legítimos donos; mas temia que algum tumulto trouxesse funestas consequências. Também era boa a vontade das autoridades civis e dos Governadores do reino. Temia-se, no entanto, a revolta do povo, que ameaçava opor-se por todos os modos à saída do Santo Milagre.
Oito meses durou esta polémica: Houve troca de ofícios, conferências e outras tentativas, todas infrutíferas, até que, na manhã de 30 de novembro aparece em todas as esquinas das ruas de Lisboa o seguinte anúncio:

NOTÍCIA AO PÚBLICO

Um oficial do exercito britannico, tendo apostado 500 libras sterlinas, que há de passar a travessa do rio Tejo, na segunda-feira que vem, á uma hora depois do meio dia, em um par de botas de cortiça, principiando o seu passeio pela torre de Belem, e d’hai á Torre Velha.
Estas botas são de uma construção admiravel e curiosa: foram inventadas pelo mesmo oficial que faz o passeio.
Lisboa
Na oficina de Joaquim Thomaz de Aquino Bulhões
1811
Com licença do desembargo do paço.[i]

Este anúncio despertou grande interesse e toda a cidade de Lisboa correu a Belém para ver o homem das botas.

Tudo estava de feição. O dia estava ameno e aprazível para se fazer tão extraordinária demonstração, milhares de pessoas cobriam as praias do Tejo a fim de admirarem o passeio aquático do engenhoso e destemido oficial inglês.
Desde manhã cedo que os lisboetas se dirigiam, a pé ou utilizando os mais variados meios de transporte, para o local onde havia de se realizar a grande prova. Ao meio-dia já não se podia romper da Junqueira até Algés e nos montes do Lazareto via-se igualmente muita gente que ali se juntara para o insólito espetáculo. No rio viam-se também muitas embarcações. Lisboa ficara despovoada.
À uma depois do meio-dia o rapazio começou a gritar: «É agora! É agora!»
Os olhares concentram-se no areal junto à Torre de Belém. Aumenta a ansiedade. Será aquele?... não será?... Passou a uma, passaram as duas horas, e nada.
«É agora! É agora!»
Todos se esticavam para ver melhor, abriam os olhos para não perder nada; mas era rebate falso. Três, três e meia, quatro horas… e nada! O público desespera.
Cai a tarde, vem a noite; vem o desânimo; começa o regresso a Lisboa. Foi a debandada sem que houvesse, ao menos, notícia do homem das botas. Quem era… onde estava.
Entretanto, nas imediações da Sé, corre a notícia que a Sagrada Partícula do Santo Milagre fora levada para bordo de uma falua que a transportava caminho de Santarém, acompanhada do patriarca até ao Sabugueiro.
No outro dia toda a Lisboa reconheceu que caiu no logro: fora atraída para Belém a fim de não impedir que o Santo Milagre regressasse à origem.
Enquanto milhares de lisboetas enchiam as praias do Tejo, metiam os escalabitanos a relíquia num barco e fugiam com ela, remando toda a força pelo rio acima, chegando nesse mesmo dia a Santarém.
Ainda hoje os lisbonenses esperam pelo homem das botas.

Fontes:

Padre Ignácio da Piedade e Vasconcelos, História de Santarém Edificada, 1ª Parte, Livro II, Cap. II, págs. 236/43 e Cap. V, págs. 251/55.
Pinho Leal, Portugal Antigo e Moderno, Vol. 4, 362/63 e Vol. 8, págs. 477/79

[i] Também se supunha que (e é muito provável) os lisboetas não se opunham à saída da Santa Partícula; mas que os escalabitanos fingiram um medo que não tinham, para se livrarem da grande despesa que tinham de suportar na condução da relíquia com a devida pompa e majestade.

quarta-feira, 12 de março de 2025

S. GONÇALO DE AMARANTE

Nascido por volta de 1187 e falecido em 10/01/1262, de uma família de nobre linhagem, este sacerdote dominicano português goza de uma grande devoção popular que se irradiou no norte do país, sendo tradicionalmente invocado como S. Gonçalo de Amarante, embora apenas tenha sido beatificado.
Os seus primeiros estudos, como era costume à época, foram-lhe ministrados por um sacerdote, tendo depois, sob a proteção do arcebispo de Braga, cursado as disciplinas eclesiásticas na escola-catedral de respetiva Sé arquiepiscopal, acabando ordenado sacerdote e nomeado pároco de S. Paio de Vizela.
Devido ao seu ardente desejo de visitar os túmulos de S. Pedro e S. Paulo e os lugares santos da Palestina, obteve licença e partiu em peregrinação, passando por Roma e depois Jerusalém, demorando-se 14 anos, sendo substituído na sua paróquia por um abade seu sobrinho.
Afirma-se que no seu regresso, este sobrinho, além de o não aceitar e não reconhecer como o legítimo pároco, ainda o escorraçou, provando ao arcebispo de então e mediante falsidades, que o padre Gonçalo falecera, obtendo assim a nomeação como pároco da freguesia.
Resignado com a atitude do sobrinho, partiu pregando o evangelho, indo até às margens do rio Tâmega.
No local onde hoje se ergue o Convento de S. Gonçalo, Amarante, diz tradição que ergueu uma pequena ermida com a invocação de N. S.ª da Assunção, aí se recolheu e, como eremita, consagrou o seu tempo à oração e penitência, indo, de quando em vez, pregar nos arredores. Passou depois ao Convento da Ordem dos Pregadores, em Guimarães, obtendo o hábito e, feito o noviciado, admitido à profissão religiosa.
Durante a sua vida terá operado muitas conversões não se esquecendo de promover o bem-estar social do povo em vários aspetos. A construção de uma ponte em granito sobre o Tâmega, para a qual angariou pessoalmente donativos nas terras circunvizinhas e alcançando dos moradores mais abastados avultadas ajudas, foi uma das suas mais relevantes ações e o povo lhe atribui muitos milagres ligados a esta construção.
Gonçalo viveu ainda mais alguns anos dedicados à oração e pregação. O seu corpo foi sepulto na ermida que ergueu, continuando muitos milagres a serem atribuídos à sua interseção. A primitiva ermida foi depois substituída por uma igreja e, em 1540, D. João III determinou sobre esta erguer o grandioso templo que é monumento histórico da cidade de Amarante.
São várias as lendas relativas a S. Gonçalo de Amarante e, se S. António é o “santo casamenteiro”, a S. Gonçalo se lhe atribui o epíteto de “casamenteiro das velhas”, com origem na freguesia que paroquiava, S. Paio de Vizela.
Tal lenda terá dado origem da cantiga popular: S. Gonçalo d’Amarante, / Casamenteiro das velhas, / Porque não casais as novas? / Que mal vos fizeram elas? Etc.
Na igreja do extinto Convento de S. Gonçalo, Igreja Matriz de Amarante, existe a estátua de S. Gonçalo do século XVI, com a sua famosa corda à cintura que, segundo a crença popular, “as encalhadas” deviam puxar três vezes, para pedir um casamento ao santo. Esta estátua está colocada num pedestal alto, com a recomendação de que não se puxe a corda, para que não caia o santo em cima.

Eis a lenda:

Ao percorrer a freguesia na sua faina pastoral, encontrou Gonçalo uma paroquiana já velha e pobre, que só inspirava compaixão. Dirigiu-lhe a palavra, perguntando porque não havia ela de casar (era solteira), para ter quem a amparasse.
Tão estranha pergunta deixou a velha atónita e não soube responder.
“Ao primeiro homem que encontrares, diz o padre, fala-lhe em casamento”, e continuou o seu caminho.
A mulher ia pensando no que o pároco lhe havia dito e, poucos passos andados, vê um jovem, filho de uma das primeiras casas da freguesia. Avistando-o, rompeu às gargalhadas.
Aturdido com as risadas da velha, o mancebo quis saber a razão, e a velha lhe falou nas palavras anteriormente ditas pelo abade.
“Tudo pode ser, respondeu o jovem, ninguém diga desta água não beberei”.
Poucos dias depois a paróquia assistia ao casamento da pobre velha com o rico proprietário, unidos e abençoados pelo santo abade.
As bênçãos do céu, diz a lenda, caíram naquela casa, pois o sábio governo da sua nova dona fez com que prosperasse e aumentasse consideravelmente.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Gon%C3%A7alo_de_Amarante

https://viagens.sapo.pt/viajar/viajar-portugal/artigos/sao-goncalo-de-amarante-os-segredos-de-uma-igreja-marcada-por-balas-de-canhao
Portugal Antigo e Moderno, vol. 12, pág. 1967.