quarta-feira, 28 de novembro de 2018

A Península Ibérica e os Lusitanos

Quando pensamos na História de Portugal, se recuarmos aos tempos mais remotos, encontramos a Península Ibérica conhecida por Spania. São diversas as conjeturas acerca da origem deste nome. A mais provável é que ele deriva do Fenício span, que quer dizer esconderijo. Para os Fenícios, a Península era uma região longínqua e como que escondida nos confins da terra, num tempo em que a navegação estava ainda no seu começo, e as distâncias e os longes se mediam pelas dificuldades dos meios de deslocação. A etimologia da palavra Espanha derivada da fenícia span, parece pois legítima. Também se diz que que o nome spania vem do facto de ali terem encontrado grande quantidade de coelhos, de cuja significação, duplicada de oculta e coelho, viesse o nome à “Hespanha”. Os Gregos também denominavam frequentemente esta região de Hespera, país do ocidente, face à sua situação geográfica a oeste, em relação à Grécia; em grego hespera significa tarde, ocidente. Os poetas Romanos muitas vezes lhe davam esta denominação, porque a sua língua e literatura tinham muitas palavras emprestadas do Grego.
O nome Ibéria pelo qual é designada a Península mais comummente, surge pela primeira vez na narração de Scylax de Carianda, explorador e marinheiro grego que viveu no século VI a.C. Num périplo à costa das colinas de Hércules (Gibraltar), abordou um rio chamado Iber, Ibris ou Iberos (Ebro), dando o primeiro nome à Península inteira e o de Iberos aos povos que a habitavam.
Com certeza não se pode afirmar que a Península foi habitada por alguma tribo ou família indígena. Dela não se conhece sinal ou vestígio algum certo, assim, a opinião mais comum é que ali terão havido povoações mais ou menos antigas, umas anteriores às outras.
O primeiro povo de que há notícia a habitar a “Hespanha”, é aquele de que parece descenderem os Bascos, os euskara ou euscaldunac, também denominados iberos. Já seis séculos antes da nossa era deixou este povo de ser preponderante na Península, como resultado da migração através dos Pirenéus dum outro povo, belicoso e bárbaro, os Celtas ou Célticos que, em resultado de ferozes combates e da sua superioridade em número, ocuparam toda a Península. Estes dois povos, originários da Ásia, fundiram-se num novo, exceto um outro que emigrou, com o nome de Liguros e Sícanos. É desta época que os autores datam a mistura do célebre povo que originou os Celtiberos. Uma outra versão sugere que estes Celtas, vindos da Gália, encontraram na Península outros povos celtas aí estabelecidos havia séculos, possuidores das melhores habitações e das melhores terras do que os recém-chegados, quiseram essas mesmas terras e habitações, e, por algum tempo, disputaram a sua posse em combates violentos, porém, porque nem todas as terras estavam ocupadas e havendo lugar para todos, trataram da paz e se reconheceram como homens da mesma estirpe, os antigos e os modernos, “hespanhóis-gauleses”, aliaram-se, e, do rio Ibero tomaram o nome de Celtiberos, que os distinguiu, quer dos Celtas residentes na Gália, quer dos antecedentemente estabelecidos na “Hespanha”. Como quer que tenha sido, o que parece certo é que, da fusão destes povos, nasceram no território central da Ibéria as tribos mistas chamadas Celtiberos e os Célticos formaram os grupos tribais bárbaros: Cântabros, Arturos e Vascónios, ao norte; Galaicos e Lusitanos ao ocidente.
Segundo Alexandre Herculano, a origem das nações deve procurar-se na agregação de homens ligados por certas condições, distinguindo-se todas as sociedades humanas entre si por caracteres que determinam a existência individual desses corpos morais, caracteres que podem variar de uns para outros povos. No entanto, segundo a opinião do mesmo autor, há três pelos quais comummente se aprecia a unidade ou entidade nacional de diversas e sucessivas gerações, são eles: a raça, a língua e o território. Desta forma se poderá, afirma o escritor, estabelecer a transição natural dos povos a que pretendemos atribuir a origem da nação, do povo cuja história queremos conhecer.
Como é historicamente que consideramos a nação portuguesa, importa saber se entre nós e algum dos povos ou tribos que em tempos remotos habitaram a Península Ibérica, existem pontos de contacto que nos liguem a esses povos primitivos.
No começo da história, os nossos cronistas terão sentido que, antes dessa época, faltaria algo que unisse o Portugal que nascia, ao mundo antigo. Portugal seria como que um conjunto de fragmentos de povos habitadores da Península, diversos em tribos, em costumes e em línguas, cujas mudanças e revoluções se ligavam complexamente na passagem do tempo por um facto constante – os limites topográficos deste território entre os Pirenéus e o mar. Para isso se enumeraram as diversas tribos que supostamente ocuparam o nosso território e os limites onde elas assentaram. Naquilo que nos interessa, o povo a quem alguns historiadores acharam por nossos avós, foi encontrado – são os Lusitanos. Resta examinar quem eram estes antepassados nossos e os territórios em que habitavam, para depois vermos se subsistem as relações mais características de família e língua.
Os limites do nosso Portugal moderno não são os mesmos, em termos geográficos, da antiga Lusitânia, e mesmo estes não eram precisos. Segundo Estrabão, o território da Lusitânia era limitado a norte e poente pelo oceano, limitado a sul pelo Tejo e para o oriente ultrapassava em muito as nossas atuais fronteiras. Também, segundo o mesmo autor, o oeste da Ibéria constava de três grandes regiões, determinadas fisicamente: o Cynetium (Algarve), a Mesoptâmia (entre Tejo e Guadiana) e a Lusitânia primitiva (entre o Tejo e o extremo norte da Galiza), a qual se decompunha em duas áreas: comarca dentre Douro e Tejo e a Galiza (ou Callaecia). No entanto, alega-se que são indecisas as noções de Estrabão, pois ora inclui a Galiza e o território de entre Douro e Minho na Lusitânia, ora os separa estabelecendo o Douro como divisória, fazendo ocupar este território por uma emigração dos Celtas (Turdetanos e Túrdulos). No tempo da cultura castreja (século VI a.C.), ao que parece, o país situava-se entre os rios Minho e Douro e o Guadiana a sul. A pátria Lusitana ocuparia a metade, a região entre o Douro e o Tejo. Porém, o que evidentemente se deduz dos geógrafos antigos, tanto dos que falaram da Lusitânia antes da conquista romana, como dos que se fundamentaram nas divisões por estes estabelecida, os territórios a que se deu o nome de Lusitânia estendiam-se pelas províncias espanholas muito para além das fronteiras orientais de Portugal. Parece certo na nova divisão das províncias da “Hespanha”, feita pelos Romanos, que estes fixaram a Lusitânia, ao norte no Douro, a sul no Guadiana e para o oriente iam muito além da raia portuguesa, incluindo Salamanca até próximo de Toledo, daí para sul e depois para nascente seguindo o curso do Guadiana desde a nascente até à sua foz.
Os grupos étnicos que habitavam a Lusitânia na proto-história, isto é, na fase de transição entre a pré-história e a história (aparecimento dos primeiros objetos de metal, a escrita e também a chegada dos Romanos à Península, no século III a.C.), terão sido os seguintes: na região do Cynetium viviam os Cynetes ou Curetes, os Cemsi, os Glaetes, os Turdetani e os Celtici; a norte do Tagus (Tejo), encontramos os Turdeli Veteres, os Transcudani, os Igaeditani e os Presuni ainda a sul do Douro. Do Douro para o extremo norte habitavam os Callaeci. Também na mesma região habitariam outros Celtici, povos resultantes da fusão de Celtas com Callaeci, de que se distinguem os Grovi. Ainda entre o Durius (Douro) e o Minius (Minho) se situavam os Callaico Bracari, os Leuni e os Seurbi. Para leste, na região a que hoje corresponde Trás-os-Montes, ficavam os Turodi. Por aqui se vê que não existia unidade social na Lusitânia, e que as populações estavam distribuídas por tribos. Terão sido os Fenícios, Lígures, Gregos, Celtas e Cartagineses, que, cruzando-se com os primitivos povos das Lusitânia, deram origem aos Lusitanos proto-históricos.
O nome Lusitânia, segundo alguns autores, deriva de Lusitani. Têm sido diversas as hipóteses emitidas, quanto à sua origem: segundo uns, provém de Lusus ou Lysa, segundo a qual a raiz Lus era muito vulgar em território celta, porém outros o deduzem de Liusetani, por sua vez tirado de liguses, antiga forma de Lígures. Uma outra hipótese defendida é a que funda a etimologia de Lusitani em Lusones, nome de uma tribo celtibérica de que falam Estrabão e Apiano. Também se afirma que a origem do nome Lusitânia se baseia no costume dos Iberos dizerem os nomes das cidades, províncias, países, do dos povos que ali habitavam, acrescentando-lhes uma palavra: do nome Lusões ou Lusas, acrescentando-lhes tania, se compõe o de Lusitânia, que na língua céltica quer dizer, terra, província ou pátria dos Lutos. O nome de Lusões, vem de Lous, querendo dizer grandeza, altura, valentia, ao pouco que os assustava a morte e ao ódio com que abominavam o domínio estrangeiro. Se esta etimologia dada ao termo Lusitânia não é correta, parece no entanto ser a mais razoável, dado assentar em factos reais. Esta denominação veio a ser tão familiar aos romanos, que por este único nome conheceram este povo, embora os Lusitanos algumas vezes se apelidassem de Bellitanos e outras de Bellidonios.
Acaso seria possível que todos estes povos ou etnias, já confundidos nos territórios centrais quando da abordagem dos Cartagineses, conseguisse resistir sem se alterar, às invasões dos Gregos e Fenícios, à conquista romana, à invasão dos Alanos, Visigodos e à conquista árabe? O Celticismo das primeiras migrações asiáticas, foi sendo destruído pelo longo domínio Cartaginês, tendo desaparecido por completo sob o império dos Romanos, deixando apenas alguns fragmentos dos seus altares e rudes moradas, ou uma e outra palavra da sua linguagem. O esquecimento, principiado com os estabelecimentos comerciais (a abordagem dos fenícios) e continuado pelos sistemas políticos das grandes nações que invadiram a Península, acabou com a fusão destes povos na nação romana. Se esta assimilação ainda não era completa, durante o século VI, época em que definitivamente o império visigótico se assentou na Península, os Visigodos tinham o seu código, uma compilação dos seus costumes tradicionais, os vencidos (hispano-romanos), regiam-se pela lei romana, e, em meados do século VII, já todos os povos se achavam assaz confundidos. Para não haver descriminação entre vencedores e vencidos, se publicou o célebre código visigótico, onde as diversas instituições bárbaras e romanas se encontraram, modificaram e se aboliram as últimas distinções legais. Século e meio de trato sucessivo entre homens unidos pela mesma crença religiosa, não se passou em vão, pois trouxe a equiparação dos dois povos em direitos e deveres e a sua fusão completa. A conquista árabe já não foi assim, dado que entre os povos visigóticos e os sarracenos havia a diferença das religiões; no entanto, as relações amigáveis que se estabeleciam entre os chefes dos dois povos, os usos, os costumes e ainda as instituições que passaram de uma sociedade para a outra, mostram que apesar das crenças, da rivalidade do domínio e dos rios de sangue vertido, os dois povos se moldaram ao contato um do outro.
O mesmo se poderá dizer na língua. A linguagem céltica não deixou vestígios e os efeitos da conquista romana alargaram-se também à transformação dos idiomas da Península. Antes falar-se-ia uma linguagem bárbara e confusa à mistura de Ibérico, Céltico, Fenício, Grego e Púnico (cartaginês), porque estas foram as misturas no sangue dos habitantes da Península, e ainda existem vestígios. Com a conquista romana, transformaram-se os idiomas; os vencedores impuseram-se aos vencidos. Era este um dos elementos da dominação do império, quer nos povos vencidos, quer nos aliados. A seguir aos Romanos, vieram os Visigodos e os Árabes, e deles nos restam ainda vestígios da linguagem.
Tendo havido pois uma assimilação completa dos povos habitadores de toda Península perante o domínio visigodo, parece que a razão que alguns autores encontraram para nossos avós, apenas assenta na realidade geográfica donde nasceu Portugal, pois nos povos que habitavam a Lusitânia não se encontravam reunidas as outras duas condições de que falava Alexandre Herculano.
No entanto, os historiadores que acham que os nossos antepassados são os Lusitanos, argumentam com o facto de que há uma originalidade coletiva no povo português. A unidade histórica peninsular, apesar do dualismo político, será a prova da originalidade portuguesa. De entre as tribos ibéricas, a lusitana era, se não a mais, uma das mais caracterizadas individualmente; há no génio português algo de vago e fugitivo, contrastante com a afirmativa do castelhano. No heroísmo lusitano há uma nobreza que difere da fúria espanhola; nas nossas letras e pensamento há uma nota profunda e sentimental, irónica ou meiga, que não se encontra na civilização de Castela – violenta, apaixonada, capaz de inventivas, mas alheia a toda a ironia, – mais que humana muitas vezes, mas outras abaixo da craveira humana, mais parecida com as feras. Trágica e ardente, a história espanhola é diferente da portuguesa, mais épica; as dissemelhanças da história traduzem as diferenças de carácter. Creem que a individualidade do carácter dos lusitanos provem duma dose maior de sangue celta que gira nas nossas veias, misturado com o nosso sangue ibérico. Os nomes próprios de lugares, de nomes de pessoas e divindades, extraídos das inscrições latinas da Lusitânia e da Tarraconense, que constituem o nosso Portugal, provam a preponderância de um elemento céltico.
Sem pretensões de prender ou afastar a nossa história com a desses povos que nos precederam, apenas se apresentam alguns dos fundamentos que há para rejeitar, ou não, essa paternidade. A história desse tempo é escura e os relatos dos acontecimentos que mudaram tanta vez, só começa a aclarar-se com os relatos dos historiadores gregos e romanos, que nos contam as guerras que uns e outros sustentaram na Península, para aqui estabelecerem o seu domínio.
Bibliografia:
História de Portugal desde os tempos primitivos… (Introdução – Francisco Duarte d’Almeida e Araújo) (Biblioteca Pública Nacional, Lisboa)
História de Portugal (Alexandre Herculano – 8ª edição – tomo I – Introdução) Biblioteca Pública Nacional, Lisboa)
História de Portugal (J. P. Oliveira Martins – tomo I) (Biblioteca Pública Nacional, Lisboa)
Revista Nova Acrópole nº 30 – 1986 (Eduardo Amarante)

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

A fundação de Portugal – A origem do nome. Tronco e linhagem real de que descendem os Reis. Como D. Egas Moniz criou D. Afonso Henriques, o milagre atribuído a N. Senhora e do defeito com que nascera. Factos e lendas.

Há quem considere que a era da independência de Portugal, deve contar-se a partir da data da morte de Afonso VI de Castela, embora por longos anos esta independência tenha sido mais uma ambição do que um facto, ambição essa traduzida por um pensamento que os acontecimentos posteriores impediram que se concretizasse.
A expressão geográfica de Portucale englobava o território entre Minho e Mondego, que fazia parte da Galiza, e a constituição do condado e o seu desmembramento do conjunto galego, obedeceu inicialmente apenas a motivos de ordem política, porém, terá sido este desmembramento a causa de uma ambição de independência. Da parte dos galegos existia solidariedade nacional e, com a Galiza dividida politicamente em duas metades, restava saber qual delas assumiria sobre si um sentimento independentista. Entre as várias causas que concorriam para este papel, ao condado Portucalense, porventura, acima de todas, terá sido o merecimento pessoal do conde D. Henrique. Circunstância decisiva, numa época medieval em que, da anarquia sistemática da constituição da sociedade, dependiam os seus destinos muito da perspicácia ou bravura dos seus chefes.
Portanto, para se perceber a origem da fundação de Portugal, de que o primeiro Rei foi D. Afonso Henriques, temos que recorrer a acontecimentos de alguns tempos atrás, indo até ao tempo de D. Afonso de Castela, o sexto, chamado o Emperador, que tomou Toledo aos mouros, o qual se ocupava em guerrear «os inimigos da nossa Santa Fé», que então ocupavam a Espanha. Empresa famosa que movia na devota cavalaria, «Grandes senhores e outras gentes Estrangeiras», que vinham em busca de honra e louvor, para, «em sua companhia (de D. Afonso VI), por serviço de Deus, e salvação das almas, participarem nas suas santas empresas». De entre essas «gentes Estrangeiras» vieram três muito principais: o conde D. Reimão de Tolosa, grande senhor em França, o conde D. Reimão de S. Gil, de Proença, e o conde D. Henrique, sobrinho do conde de Tolosa, segundo filho de uma sua irmã e do rei da Hungria.
Estes condes, andando em companhia do rei D. Afonso na guerra contra os mouros, querendo este honrá-los pelos seus cometimentos, remunerar os seus nobres feitos e trabalhos na guerra contra os “infiéis”, determinou casar com eles três filhas suas: D. Urraca casou com o conde Reimão de Tolosa, de quem nasceu D. Afonso de Castela, também denominado Emperador; D. Elvira, casou com o conde D. Reimão de S. Gil; e D. Tareja casou com D. Henrique, sobrinho do conde de Tolosa, dando-lhe o Emperador em casamento, Coimbra com toda a terra até o castelo de Lobeira, uma légua além de Pontevedra, na Galiza, toda a terra de Lamego e Viseu, que seu pai, o rei D. Fernando e ele ganharam nas comarcas da Beira. Deu-lhe todo este território, chamado condado Portucalense, com a condição que o conde D. Henrique o servisse, fosse às cortes e, chamado e sendo caso que fosse doente, ou tivesse outro legítimo impedimento, lhe mandasse às cortes «um dos mais principais de sua terra a seu serviço com trezentos de cavalo», concedendo-lhe ainda, a mais terra que conquistasse aos mouros e, tomando-a, a acrescentasse ao seu condado, o que ele e seus sucessores fizeram, não sem grandes trabalhos e arriscados perigos, como mais adiante, em outras publicações, se verá. E não querendo o conde D. Henrique cumprir com isto, qualquer que fosse o rei de Castela, podia tomar a terra e mais toda a outra que o dito conde e seus sucessores tivessem conquistado, e fazer dela o que lhe aprouvesse, como de coisa sua.
A causa por que o condado se chamou Portucale, e depois Portugal, teve a ver com um assentamento localizado na foz do rio Douro (Cale), que, por aí aportarem mercadores e navios, foi povoado, outrossim, por pescadores pelo rio fora ancorarem e estenderem as suas redes noutro local mais conveniente, se povoou estoutro lugar que se chamou Portus, depois cidade principal, donde juntando estes dois nomes, terá derivado o nome de Portugal.
Era costume naquele tempo, que todos os filhos de reis se chamassem reis, assim como as filhas rainhas, mesmo os filhos bastardos, assim sendo, apesar de que D. Afonso de Castela tivesse dado o condado de Portugal ao conde D. Henrique, porém ele nunca se chamou rei, embora a sua mulher, filha de D. Afonso, se chamasse rainha, nem mesmo o filho, o príncipe D. Afonso, cuja geração veio de reis, só a partir da vitória na grande batalha de Campo d’Ourique, contra cinco reis mouros, onde foi levantado por Rei de Portugal, passou a ser tratado por esse título. Da parte do pai, D. Afonso Henriques era neto do rei da Hungria, da parte da mãe era neto de D. Afonso VI de Castela. Deste conde D. Henrique e da rainha D. Tareja descendem os Reis de Portugal.
Casados, o conde D. Henrique com D. Teresa, logo durante o período da gravidez, o seu grande privado, D. Egas Moniz, nobre fidalgo, que com ele viera de França e a quem ele fizera muitas mercês, pediu-lhe que «qualquer filho ou filha que a Rainha parisse», lho desse para criar. Veio a nascer (1094) uma criança «grande e formosa», mas com as pernas «tão encolhidas», que todos os Mestres julgavam que jamais delas poderia recuperar.
Egas Moniz, assim que soube do nascimento, cavalgou a toda a brida para Guimarães, pedindo ao conde que lhe desse o filho nascido como prometera, para o criar. O conde lhe disse que não quisesse tomar tal encargo, pois o seu filho nascera «por seus pecados tolheito de modo, que todos tinham que nunca guareceria», e nunca seria homem. Muito pesaroso D. Egas, disse: «Senhor, antes cuido eu que por meus pecados aconteceu; mas a Deus aprouve tal ventura, dai-me todavia vosso filho, quejando quer que seja». Posto que D. Henrique tivesse grande acanhamento pelo bem que queria a D. Egas, «de o encarregar de semelhante criação», para o comprazer lho entregou. D. Egas Moniz, ao ver uma criança tão formosa e com tal «aleijão», com muita compaixão dela, confiando muito que Deus a poderia tornar numa criança normal e saudável, a tomou e fez criar, com tanto cuidado e amor como se fora uma criança sã.
Tendo já D. Afonso 5 anos, estando uma noite D. Egas Moniz a dormir, lhe apareceu nossa Senhora e disse: «D. Egas, dormes». Acordando ele a esta voz e visão, perguntou: «Senhora, quem soes vós?» Ela respondeu: «Eu sou a Virgem Maria, que te mando que vás a um tal lugar», indicando-lhe o tal lugar, «e faze aí cavar e acharás aí uma igreja, que em outro tempo foi começada em meu nome, e uma imagem minha; faze correger a Imagem e a igreja feita em minha honra; isto feito, farás aí vigília poendo o Menino que crias sobre o altar, e sabe que guarecerá e será de todo são, e não menos te trabalha daí avante de o bem guardar e criar, como fazes; porque meu filho quer por ele destruir muitos inimigos da fé».
Logo pela manhã se foi Egas Moniz ao lugar que lhe fora dito, mandando aí cavar e, achando a igreja e Imagem, fez tudo o que nossa Senhora lhe mandara, recuperando o Menino do «aleijão» como se nunca tivera tal defeito.
Perante este milagre, D. Egas Moniz deu muitas graças e louvores a Deus, criando a partir daí a criança com muito mais cuidado, tendo sido sempre seu aio até que seu pai faleceu em Astorga, numa idade em que ele já supria nas guerras as fadigas e trabalhos de seu pai. Em razão deste milagre foi depois feito nesta igreja o mosteiro de Cárquere (Resende).
Diz também Duarte Galvão, autor da Crónica de El-Rei D. Afonso Henriques, que embora alguns contem que ele nasceu além-mar e foi batizado no rio Jordão, na documentação que por certo terá consultado, achou mais ser verdade o seu nascimento, nos factos acima relatados.
Fontes:
Crónica d’El-Rei D. Afonso Henriques por Duarte Galvão, Biblioteca de Clássicos Portugueses (Volume LI)
História de Portugal por J.P. Oliveira Martins, Tomo I – Lisboa Livraria Bertrand (1882)