Por certo que muitos conhecem as tradicionais festas das fogaças ou das fogaceiras (fogaça é o bolo e fogaceira é a menina que a transporta na procissão), que se realizam anualmente em Santa Maria da Feira, em Pombal e na freguesia de Abiul, deste mesmo concelho, e estou certo que quase todos, senão todos, já provaram esse tradicional pão doce, cujos ingredientes são basicamente a farinha de trigo, os ovos e o açúcar, embora este bolo vá adquirindo formato diferente, à medida que descemos no país, de norte para sul.
Mas talvez muitos desconheçam
a origem da fogaça e que ela é mais antiga que o nosso Portugal e que, depois
de serem oferendas nos altares, passaram também de atos de deferência ou favor, e depois a foro, ou imposto, como antigamente se dizia.
Com efeito, parece que o uso
da fogaça é muito mais antigo que a nossa monarquia, pois data, pelo menos, do
tempo dos romanos. Eram pequenos pães, redondos e achatados, próprios para serem
cosidos (mais propriamente assados) sob o borralho, a que os latinos chamavam
subcinerícios (que estão debaixo de cinza; cosidos ao borralho). Em algumas
províncias do norte ainda se usava isto no século XIX e lhe chamavam bolo do
borralho.
Quando os lusitanos se
converteram ao cristianismo, começaram a colocar ofertas sobre os altares, que
consistiam em fogaças, maiores ou menores, e mais ou menos aperfeiçoadas, assim
como outras ofertas, e, porque eram sobretudo comestíveis, lhe davam o nome de
fogaça.
Com o passar dos tempos, os
vassalos, colonos e enfiteutas, ou foreiros (arrendatários), passaram a
oferecer ao rei ou ao senhorio, pelas festas, ou quando vinham às suas terras,
fogaças como presentes, e assim, um ato de deferência, de atenção e obséquio,
que até então era um ato de favor, converteu-se em foro, num imposto. Muitos
forais e emprazamentos impunham o foro ou reconhecença de fogaças. Porém, nas terras
de Santa Maria da Feira, nunca foram obrigatórias e, por isso, nunca
consideradas foro. Era a câmara que mandava confecionar um certo número de
fogaças, assim como alguns particulares, para darem talhadas aos amigos (que
tenham 12 vinténs, ou o que quiserem, para dar à fogaceira).
O povo da Feira confiava que
esta fatiazinhas de fogaça livravam de muitos males da alma e do corpo.
Para alguns, o nome de fogaça
atribuído a estes bolos se deve a uma Maria Fogaça, de Pombal, pela enorme
fogaça que ela mandava ali coser por ocasião da festa naquela vila, mas tal não
parece certo, pois, ou ela se apropriou do nome, ou o povo lho deu, ou até mesmo já teria
este apelido, pois o apelido Fogaça é muito mais antigo do que ela.
Esta devoção do culto a S.
Sebastião recrudesceu na época medieval devido às catástrofes, levando a que
manifestações religiosas anteriores, como a festa do Espírito Santo, promovida
pela rainha Santa Isabel, donatária do Castelo da Feira, se convertessem no
cerimonial de devoção a S. Sebastião, sempre acompanhado pela fogaça, o pão
doce distribuído pelos pobres, em continuação da partilha e assistência
comunitária já vivida.
É referido, no cumprimento do
voto, a existência de três fogaças, confecionadas especificamente para o ritual
da devoção e que eram levadas em procissão por três jovens donzelas, desde o
Castelo até à Igreja Matriz, sendo aí benzidas, cortadas e repartidas pelo povo
presente, como paliativo contra os males do mundo: fome, peste e guerra.
Em 1758 já são cinco as
jovens na procissão: três delas levavam as fogaças à cabeça (de um alqueire cada
uma); outra levava um tabuleiro com cinco velas; e a quinta levava à cabeça a
miniatura do Castelo da Feira ornado com muitas bandeiras. Nesta altura a
fogaça já teria o formato que tem hoje: um cone com a representação das quatro
torres do Castelo de Santa Maria da Feira, visto com símbolo de união do vasto
território que outrora se designou por Terra de Santa Maria.
Com a implantação da
República, o cerimonial passou a ser algo diferente, acrescentando-se o Cortejo
Cívico antes da Missa Solene, o qual, saindo dos Paços do Concelho até à Igreja
Matriz, incorporava dezenas (às vezes centenas) de meninas calçadas e vestidas
de branco com uma faixa de cor à cinta (as fogaceiras), transportando à cabeça
a Fogaça da Feira, mantendo-se a tradição dos três mandados – as três
fogaças maiores –, o tabuleiro com as velas e o castelo miniatura, seguidos pelas
autoridades políticas, administrativas, judiciais, militares e outras
personalidades de relevo na vida do município.
Mandava a tradição que, por
ocasião da Festa das Fogaceiras, o Povo das Terras de Santa Maria da
Feira enviasse fogaças aos familiares a amigos que se encontravam longe.
Se até 1700 – data em que se
extinguiu o Condado da Feira – a Festa das Fogaceiras foi promovida pelos
senhores das Terras de Santa Maria, os Condes, a partir desta data a festa foi
interrompida, reatando-se de seguida e por iniciativa de famílias abastadas do
concelho, até 1749. Entretanto, um novo surto de peste surgiu em 1753, o que
fez com que, face à vontade do povo e a existência antiquíssima do voto, se
determinasse, por alvará de 30 de junho, que a Câmara Municipal assumisse em
definitivo a organização da festa, para o que despenderia 30 mil réis. Esta
determinação foi cumprida até 1910, altura em que, devido à separação entre o
Estado e a Igreja, a festa passou a ser realizada pelas autoridades civis e pela
Santa Casa da Misericórdia.
A 15 de julho de 1939, por
deliberação, a Câmara Municipal retomou a responsabilidade da organização
destes festejos, decisão que se mantém agora como atribuição assumida pelo
poder autárquico concelhio. Inicialmente distribuídas pela população em geral,
depois pelos pobres e mais tarde pelos presos e pelas personalidades
concelhias, em fatias chamadas “mandados”, as fogaças do voto são hoje
entregues à autoridade religiosa, política e militar regional, que tem
jurisdição sobre o Município de Santa Maria da Feira.
Também na freguesia de Abiul,
Pombal, em virtude de uma peste que matou a maior parte da gente da freguesia
(1561/62), um “figurão” da freguesia prometeu fazer todos os anos uma festa
do bolo e da Nossa Senhora das Neves, padroeira da freguesia, que terá
feito logo cessar a peste. Depois da sua morte a festa continuou por muitos
anos, primeiro a expensas da câmara e depois organizada por mordomos e
voluntários.
Esta festa realizava-se no
primeiro domingo de agosto e era conhecida por Festas do Bodo. Num grande forno
que se acendia na sexta-feira antecedente e estando a arder até ao dia da festa,
gastando-se entre 12 a 13 carros de bois de lenha, no domingo era metido no seu
interior um bolo (fogaça), em que na sua confeção se gastavam entre 10 a 12
alqueires de trigo. Em procissão da igreja até ao forno, o juiz encarregado de
dar a volta ao bolo, previamente preparado com os sacramentos da confissão e
comunhão, percorria todo o trajeto, de costas, junto ao andor de Nossa Senhora.
Antes de entrar no forno retirava um cravo da mão da padroeira e, sob o olhar
da imagem da Virgem, entrava no forno com o cravo preso nos dentes, e dava três
voltas no seu interior, saindo sem sofrer quaisquer queimaduras. Esta tradição
foi mantida até o ano de 1913.
Em Pombal, no último quarto
do século XII, tempo em que viveu D. Maria Fogaça (a quem me referi mais
acima), houve uma terrível praga de gafanhotos e lagartas, que devoravam todas
as plantas. A câmara e os habitantes organizaram uma procissão, que saiu da
igreja de S. Pedro e se foi recolher ao rocio do Cardal, assim chamado pela
grande quantidade de cardos que produzia.
Nos anos seguintes, esta D.
Maria Fogaça tomou a seu cargo fazer a festa a Nossa Senhora de Jerusalém,
cosendo-se nesse dia dois grandes bolos (fogaças) de trigo, sendo um para o
pároco e o outro para o povo presente. Estes dois bolos, por serem demasiado
grandes, ficaram tortos, mas um criado da casa de D. Maria, em nome da Senhora
de Jerusalém, atreveu-se a entrar no forno para os endireitar, saindo sem
qualquer lesão, do que todos se admiraram de tamanho milagre. Depois estas duas
fogaças passaram a uma, feita com 20 alqueires de farinha de trigo, levada ao
forno (no Cardal) num andor, na sexta-feira, ficando ali a coser até ao domingo
da festa, que era o último de junho. Depois de cosida era a fogaça
levada em andor para a Igreja da Misericórdia, para ser repartida pelo povo da
vila e arrabaldes.
A princípio esta festa era no
último domingo de junho, mas, como eles quisessem que a fogaça fosse feita de
pão novo e ainda então não havia trigo maduro, a mudaram para o último domingo
de julho.