Dª Mafalda Sanches de
Portugal
Rainha santa Mafalda |
Foi uma das filhas do segundo rei de Portugal, D. Sancho I e
de sua esposa a rainha Dª Dulce de Aragão, e recebeu o nome da sua avó, a
rainha Dª Mafalda de Saboia, mulher de D. Afonso Henriques. Como beata da
Igreja Católica é venerada sob o nome de Rainha Santa Mafalda.
O local do seu nascimento é suposto ter sido em Amarante e
em data indefinida; são apontadas como datas previsíveis, 1195, 1196 e 1190, havendo
até quem aponte o ano de 1200. Sendo uma das filhas mais novas, legítimas, de
D. Sancho e se estiver certa a data 1 de setembro de 1198 como a do falecimento
de sua mãe, Dª Dulce de Aragão, esta última data, 1200, não pode ser anotada. Era,
portanto, uma criança quando sua mãe faleceu. Também a data do seu falecimento
é obscura. Embora seja apontado o dia 1 de maio, encontrei como o ano do óbito,
1256 e 1290, porém, a ser verdade que tenha acontecido o seu ocaso com a idade
de 90 anos, terá morrido por volta de 1285. Encontra-se sepultada no Mosteiro
de Arouca. Foi beatificada em 1792. O seu corpo repousa numa urna numa das alas
da Igreja, para onde foi transladado em 1793.
Após o seu nascimento ficou em terras
de Penafiel aos cuidados de Dª Urraca Viegas, da nobre família dos Ribadouro,
bem conhecida de D. Sancho, pois Dª Urraca era filha de Egas Moniz, o aio de
seu pai, o nosso primeiro rei, e de sua mulher Dª Tereza Afonso. Foi esta, já
viúva, quem criou os príncipes de D. Afonso Henriques. Dª Urraca Viegas, além
de esmerada educação, deixou a Dª Mafalda vários bens em testamento.
A infanta Mafalda era uma bela mulher, excelente nas
proporções de corpo e fisionomia de rosto, como diz Ruy de Pina na crónica de
D. Sancho I: “E assi houve El-Rei D.
Sancho da Rainha Dona Doce sua mulher a Infanta Dona Mafalda, que em perfeições,
e bondades do corpo, e d’alma, foi Princeza mui acabada (…)”.
Em 1214, no prosseguimento da sua guerra contra os mouros, pretendendo
D. Afonso VIII de Castela encontrar-se com D. Afonso II de Portugal, a fim de
tratar de negócios atinentes aos seus respetivos reinos e, ao que parece,
associar o seu genro às suas empresas militares, partiu numa jornada de Burgos
a Placência. O rei de Castela encontrava-se doente, agravando-se a sua
enfermidade «quando soube se escusava
elRey de Portugal de chegar aquela Cidade, & só vinha em se fazerem vistas
nos confins dos Reynos, porque interpretava a desprezo próprio, sendo parente
tão chegado, e maior de idade, (…)», acabando por falecer em Gutierre-Muñoz
(5 de outubro) com a idade de 57 anos.
Sucedeu a D. Afonso VIII de Castela seu filho Henrique e, por
testamento de seu pai, coube à sua mãe, rainha D. Leonor, a regência do reino.
Dª Leonor viria a falecer pouco tempo depois, ficando então a regência e
tutoria do jovem rei D. Henrique, a cargo da rainha de Leão, Dª Berengária, sua
irmã mais velha, que se encontrava em Castela em virtude da anulação do seu casamento
com o rei de Leão, mas esta, devido às várias disputas e para evitar desordens,
renunciou à regência em favor de D. Álvaro de Lara, “fenhor principal, & de grande estado”, face ao parecer dos
maiores do reino.
Rapidamente começou a contestação a D. Álvaro, pois este não
terá respeitado as condições e limitações a que se comprometeu ao assumir a regência
e tutoria, cometendo excessos no seu governo, usando de tirania e vingança
contra vários senhores, quer da nobreza, quer mesmo da Igreja, não escapando a
própria irmã do rei, a rainha Dª Berengária, o que levou a que esta, juntamente
com outros senhores de Castela, intentassem afastá-lo destas funções, chegando
mesmo a ser excomungado. Temendo perder o poder e correr o risco de ser
perseguido, procurou apoiar-se fora do reino, quando já se levantavam grandes
ameaças à sua substituição.
Portugal, através D. Afonso II, já tinha sido de grande
valia para Castela, ajudando com o nosso exército o falecido monarca D. Afonso
VIII na reconquista, ao participar numa coligação de forças cristãs na batalha
de Navas de Tolosa, a qual marcou o início queda do Califado Almóada, e D.
Álvaro pensou que encontraria no rei português o parceiro ideal para a
persecução dos seus desígnios. Se o pensou, melhor o fez, e para isso enviou uma
embaixada a D. Afonso II, pedindo-lhe que consentisse no casamento de sua irmã
Dª Mafalda com o rei de Castela, procurando desta forma obter o apoio de
Portugal para a sua empresa. D. Afonso consentiu de bom grado no casamento e
logo partiu a princesa para Palença e daí para Medina d’el Campo, onde casaram.
O rei de Castela teria por esta altura cerca de 12 anos e D. Mafalda era já uma
senhora de 19 anos. D. Henrique veio a falecer pouco tempo depois, pelo que Dª
Mafalda regressou a Portugal como partiu, ou seja, ainda donzela.
Este consórcio teve o condão de agravar ainda mais as
divergências entre certa nobreza de Castela, nomeadamente a rainha Dª
Berengária, que estava frontalmente contra este casamento e procurou meios para
obter a sua anulação, baseando-se no facto de, devido ao grau de parentesco
entre os nubentes, este casamento só poderia ser realizado com a devida “dispensação”
papal. O papa Inocêncio III encarregou o bispo D. Telo de Palença e o bispo D.
Moninho de Burgos de apreciarem este processo, os quais, ouvidas as partes,
julgaram nulo o casamento, regressando Dª Mafalda a Portugal. Porém, tal não
seria necessário, pois, segundo rezam as crónicas, daí a poucos dias, andando
D. Henrique em Palença jogando com os seus fidalgos, um deles lançando alto um “mancal”
(pau curto e ferrado, de tiro ao alvo), este tocou num telhado, fazendo cair
uma telha, a qual atingiu o rei D. Henrique na cabeça, vindo a falecer poucos
dias depois. Outros dizem que andava a jogar a “pella” com os seus criados (jogo com bola de couro cheia de lã), mas
todos concordando que foi a queda de uma telha na cabeça, a causa da morte do
juvenil rei, chegando assim ao fim da sua vida, sem ter completado 14 anos de
idade.
D. Sancho I, pai de Dª Mafalda, padecia de uma enfermidade
crónica que se desenvolveu na parte final do seu reinado, “a ponto que as
esperanças de remédio inteiramente se desvaneceram”, pelo que, atendendo ao
carácter do seu filho D. Afonso, o herdeiro do trono, antes da sua morte deixou
testamento onde dispôs as suas últimas vontades, distribuindo os seus bens por
todos os seus filhos legítimos e netos, não se esquecendo das amantes e dos filhos
que teve delas, assim como netos, abades, conventos, mosteiros, etc., não faltando
no rol, bispos e o papa: «Em nome de
Deos. Eu Dom Sancho pella graça de Deos Rey de Portugal, temendo o dia de minha
morte e pera faluação de minha alma, & bem de meus filhos, & de todo
meu Reyno, faço teftamento, por meio do qual permaneçaõ em paz & tranquilidade,
afi meus filhos & vaffalos, como o Reyno, & tudo o mais de que a
piedade diuina me fez entrega. (…) A
Rainha Dona Mafalda dei dous mofteiros, Bouças, & Arouca, & a herdade
de Cea, a qual foy de fua mãy, & quarenta mil marauedis, com duzentos
marcos de prata.» E para prevenir as discórdias, principalmente entre
irmãos, que este testamento poderia originar, D. Sancho obrigou o seu sucessor
no reino, D. Afonso, a jurá-lo e a subscrevê-lo: «(…). E eu Rey Dom Afonfo (naquele tempo o príncipe herdeiro era
tratado por rei) filho do sobredito Rey
Dom Sancho, & da Rainha Dona Dulce prometo firmemente na fé de Jefu Chrifto
de cumprir, e atentar por todas eftas coufas fe viuer mais que meu pay, &
que naõ impidirei, nem cõfentirei impedirfe a menor dellas. E difto fiz já
omagem nas mãos de meu pay, & tambem jurei nas mãos do eleito de Braga, do
Bifpo de Coimbra, & do Abbade de Alcobaça, que cumprirei e terei particular
cuidado de todas eftas coufas.»
De facto, D. Afonso era de ânimo áspero e austero, e, subindo
ao trono após o falecimento de D. Sancho, quebrou o seu juramento, alegando que
as coisas do reino não se podiam dar nem alhear, “que era em mui diminuição do Reino”, pedindo a restituição das
vilas e fortalezas que seu pai havia doado. O rei baseava-se na doutrina
contida nas resoluções do concílio de Toledo que compõem a introdução do Código
Visigótico e onde se encontram as leis políticas do começo da existência da
monarquia, segundo as quais “o património real passava integralmente do rei
fallecido para o successor, não podendo reverter em beneficio dos filhos senão
os bens adquiridos antes de elle obter a coroa.” Os seus irmãos, os
infantes D. Pedro e D. Fernando saíram de Portugal. D. Pedro foi para a corte de
Leão e D. Fernando para França, para junto de sua tia a condessa de Flandres.
Entretanto, as suas irmãs, as infantas Dª Teresa e Dª Sancha haviam requerido
que o papa Inocêncio III “lhes confirmasse em especial o dominio daquelles
logares” que lhes couberam em testamento, a saber, o senhorio de
Montemor-o-Velho e Esgueira a Dª Teresa e o de Alenquer a Dª Sancha. Porém, e
porque D. Afonso tinha alguma razão, logo se levantaram guerras entre ele e
suas irmãs, por se recusarem estas ao pedido de seu irmão.
Dª Mafalda, que além da herança, já possuía, ao que parece,
o mosteiro de Tuias, também suplicou da Cúria Romana “um titulo que a
protegesse contra as tentativas de D. Afonso”, tendo para isso sido
incumbidos da execução da respetiva bula os prelados de Compostela, Guarda e
Lisboa. A decisão papal determinou que dos bens que seu pai lhe deixara, ela só
podia ter o direito de padroado, ou seja, de benefício. Contudo, Mafalda
prevendo que o confronto com seu irmão lhe era desfavorável, contornou o
obstáculo associando os seus interesses à ordem dos Hospitalários, doando-lhes
o domínio de Bouças e outros lugares, reservando para si o usufruto em vida.
Uma vez que resolvera viver como monja, fazia uma valiosa doação à Ordem do
Hospital e nada perdia, pois pouco lhe importava que os seus bens revertessem para
os hospitalários ou para a coroa. Depois de várias disputas e como não havia
provas suficientes para resolver esta questão, o papa Clemente III nomeou os
bispos de Astorga, Burgos e Segóvia, para que julgassem a questão em
definitivo, que ao que parece, “ao menos quanto a Bouças, Mafalda ficou
despojada da herança paterna.”
À luz da sociedade medieval havia várias condicionantes nas
heranças, nomeadamente quando estavam em causa os membros das famílias reais e
da nobreza. Em primeiro lugar surge a questão da linhagem na sucessão,
necessariamente masculina, o que implicava a inferiorização dos outros filhos.
Geralmente os segundos filhos recebiam uma proporção inferior do património ou
seguiam a via militar ou religiosa. As filhas viviam à custa do chefe da
linhagem e podiam servir como elemento estratégico em alianças através do
casamento ou, a exemplo dos homens, seguir a via religiosa. Para tal chegava-se
a reservar para elas comunidades inteiras ou a fundar abadias. A Ordem de
Cister foi a ordem de eleição para as mulheres da realeza e da alta nobreza, e terá
sido esta uma das razões para a opção tomada pelas filhas de D. Sancho I.
Com cerca de onze anos, Dª Mafalda juntou-se às suas irmãs
Teresa e Sancha no mosteiro de Lorvão, que já lá habitavam. Originalmente
masculino, em 1206 mudou para a Ordem de Cister e passou ao mesmo tempo a ser
feminino, com a invocação de Santa Maria, sofrendo uma profunda transformação
devido à intervenção de Dª Teresa. Teresa e Sancha vieram a ser beatificadas e
encontram-se sepultadas na igreja do mosteiro.
Como acima referi, Dª Mafalda partiu para Castela a fim de
casar com menino rei, Henrique I, tendo regressado a Portugal com o título de
rainha de Castela, pouco tempo depois, em virtude do falecimento precoce do seu
esposo, bem como da anulação do seu casamento que, entretanto, tinha sido
requerido.
Uma vez em Portugal, há quem afirme que procurou
reconfortar-se junto da sua velha ama, Dª Urraca Viegas da família dos
Ribadouro, outros que se enclausurou no convento de Arouca.
Uma outra versão diz que seu irmão, “D. Afonso II, por
ella dizer que queria morrer freira, lhe deu a escolher o convento de Portugal
que ella quisesse, para n’elle se recolher.”, tendo ela preferido o
convento de Arouca, indo para lá viver em 1220.
Qualquer que seja a versão certa, Dª Mafalda acabou por ir
viver no mosteiro de Arouca, encontrando-o arruinado, com umas rendas alienadas
e outras perdidas, a igreja sem ornamentos e as freiras vivendo na pobreza, às
custas do seu trabalho por falta de rendimentos. Mafalda revitalizou-o, conseguindo
do bispo de Lamego D. Paio (1224) autorização para a substituição da Ordem
Beneditina para a Ordem de Cister, tornando-se ela própria monja cisterciense.
Faleceu no mosteiro de Rio Tinto, tendo, aquando da exumação
do seu corpo para ser trasladado para Arouca, este sido encontrado incorrupto,
gerando uma onda de fervor religioso.
Foi beatificada pelo papa Pio VI a 27 de junho de 1793,
sendo festejada pela Igreja Católica a 2 de maio.
A
MULA DA RAINHA SANTA
Diz a lenda que quis a destino que a rainha Santa Mafalda
morresse em Rio Tinto, aos 90 anos, durante uma cobrança de foros e rendas. Quiseram
os habitantes da localidade que ela lá fosse sepultada, discordando os de
Arouca com a alegação de que Dª Mafalda tinha passado grande parte da sua vida
no mosteiro de Arouca. Então alguém se lembrou que a santa costumava viajar de
mula, sugerindo que se colocasse o caixão em cima da mula. Para onde ela se
deslocasse, seria o local da sepultura. A mula dirigiu-se para Arouca.
Fontes:
Crónica de D. Sancho I, págs. 92 a 95 (Ruy de Pina)
Crónica de D. Afonso II, pág. 22 (Ruy de Pina)
Monarquia Lusitana, Quarta Parte, págs. 61 a 82v. (Fr António
Brandão)
Portugal Antigo e Moderno, Volume I, pág. 238FF (Pinho
Leal)
História de Portugal, Tomo III, Livro III, págs. 277 e
278 (Alexandre Herculano)
História de Portugal, Tomo IV, Livro IV, págs. 15 a
21, 60 e 61 (Alexandre Herculano)
A mula da
rainha